Quando nós, lésbicas, não éramos mulheres

Houve um tempo, num espaço descontínuo – um espaço que se dispersava pelos continentes
–, em que lésbicas não eram mulheres. Não quero dizer que as lésbicas agora são mulheres,
embora algumas pensem assim, enquanto outras se intitulam butch ou femme, muitas
preferem se intitular queer ou transgênero, e outras se identificam com as masculinidades
femininas – as opções são muitas para autoidentificação para lésbicas hoje. Mas naquela
época, o que nós lésbicas éramos era uma coisa: não éramos mulheres. E tudo parecia tão
claro, então.
Talvez fosse apropriado, nesta ocasião em que nos encontramos para celebrar a obra de
Monique Wittig, que eu contasse uma história, uma ficção no estilo de As guerrilheiras 1 , ou
uma alegoria como a de Paris-la-Politique 2 , ou a versão de um poema épico como Virgile,
non 3 . A própria Wittig agora é uma espécie de lenda. Mas não vou contar uma história – ou,
não exatamente uma história. Vou refletir, retrospectivamente, sobre o que o trabalho dela
significou para mim na década de 1980, quando eu trabalhava com estudos lésbicos e
feministas, e como ele ainda se cruza com as questões mais críticas que me preocupam agora.
Na década de 1980, ler Wittig e as poucas conversas maravilhosamente intensas que tive com
ela no norte da Califórnia me levaram a começar o projeto de escrever teoria lésbica distinta
da teoria feminista. A distinção ficou clara para mim após a leitura de três textos cruciais: O
pensamento hétero 4 , “Não se nasce mulher” e O corpo lésbico 5 . Em retrospecto, parece-me
que uma nova figura emergiu dessas obras – uma figura conceitual – que foi encapsulada na
afirmação “lésbicas não são mulheres”. Essa afirmação, embora geralmente incompreendida e
criticada de várias posições, não obstante disparou a imaginação e, na verdade, do ponto de
vista de hoje, provou-se presciente: como eu disse há pouco, as lésbicas de hoje somos muitas
outras coisas – e apenas raramente, mulheres. Mas, naquele momento, a afirmação “lésbicas
não são mulheres” tinha o condão de abrir a mente e tornar visível e pensável um espaço
conceitual até então impensável, justamente pela hegemonia do pensamento heterossexual –
bem como o espaço chamado “ponto cego” é invisibilizado no espelho retrovisor de um carro
pelo quadro ou chassi do próprio carro. A escrita de Wittig abriu um espaço conceitual,
virtual, que havia sido anulado por todos os discursos e ideologias de direita e esquerda,
incluindo o feminismo.
Naquele espaço conceitual virtual, apareceu para mim um tipo diferente de mulher, se é que
posso dizer isso usando o título de um livro que estávamos lendo na época. Eu a chamei de
sujeito excêntrico. Porque, se lésbicas não são mulheres, mas lésbicas são, como eu, de carne
e osso, seres que pensam e escrevem, que vivem no mundo e com quem me relaciono todos os
dias, então lésbicas são sujeitos sociais e, muito provavelmente, também sujeitos psíquicos.
Chamei esse sujeito de excêntrico não apenas no sentido de se desviar do caminho
convencional, normativo, mas também de ek-cêntrico no sentido de não focar na instituição
que sustenta e produz a mente hetero, ou seja, a instituição da heterossexualidade. Na
realidade, essa instituição não prevê tal assunto e não poderia contemplá-lo, não poderia
visualizá-lo.

O que caracteriza o sujeito excêntrico é um duplo deslocamento: primeiro, o deslocamento
psíquico da energia erótica em direção a uma figura que ultrapassa as categorias de sexo e
gênero, a figura que Wittig chamou de “a lésbica”; segundo, o autodeslocamento ou
desidentificação do sujeito em relação aos pressupostos culturais e práticas sociais inerentes
às categorias de gênero e sexo. Foi assim que Wittig definiu essa figura:
“Lésbica é o único conceito que conheço que está além das categorias de sexo (mulher e
homem), porque o sujeito designado (lésbica) não é uma mulher econômica, política ou
ideologicamente falando. O que constitui uma mulher é uma relação social específica com um
homem, relação que envolve obrigações pessoais e físicas e também econômicas (‘auxílio-
moradia’, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos etc.), relação
da qual escapam as lésbicas quando se recusam a se tornar ou permanecer heterossexuais.”
Rejeitar o contrato heterossexual, não apenas nas próprias práticas de vida, mas também nas
próprias práticas de conhecimento – o que Wittig chamou de “prática subjetiva, cognitiva” –
constitui um deslocamento epistemológico, pois muda as condições de possibilidade do saber
e do conhecimento, e isso constitui uma transformação da consciência histórica.
A consciência da opressão – escreveu Wittig – “não é apenas uma reação (uma luta) contra a
opressão: supõe também uma reavaliação conceitual total do mundo social, sua reorganização
total com novos conceitos, desenvolvidos do ponto de vista da opressão […] vamos chamá-la
de uma prática subjetiva, cognitiva. Esse movimento de ida e volta entre os dois níveis de
realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, ambas realidades sociais)
é alcançado por meio da linguagem.”
O trabalho da linguagem nesse vai e vem já está inscrito no título do ensaio que Wittig
escreveu em 1981. “Não se nasce mulher.” Se a filósofa Simone de Beauvoir havia dito: “Não
se nasce mulher, torna-se uma” (e o mesmo, à sua maneira, Freud havia dito), a escritora
Wittig disse apenas: “não se nasce mulher”. Quase as mesmas palavras, mas com uma grande
diferença de significado – sem falar na diferença sexual. Ao mudar a ênfase da palavra
nascimento para a palavra mulher, a citação de Wittig da frase de Beauvoir invoca ou parodia
a definição heterossexual de mulher como “o segundo sexo”, desestabilizando seu significado
e, ao mesmo tempo, deslocando seus efeitos.
Tal movimento implica deslocamento e autodeslocamento: sair ou abandonar um lugar que é
conhecido, que é um “lar” – fisicamente, emocionalmente, linguisticamente,
epistemologicamente – e trocá-lo por outro que é desconhecido, que não é familiar, nem
emocional, nem conceitualmente; um lugar de onde falar e pensar são provisórios, incertos,
não autorizados na melhor das hipóteses. Mas sair não é uma escolha, já que não é possível
morar lá em primeiro lugar. Portanto, todos os aspectos do deslocamento, do geopolítico ao
epistemológico, ao afetivo, são dolorosos e arriscados, pois implicam um ir e vir constante,
uma redefinição das fronteiras entre corpos e discursos, identidades e comunidades. Ao
mesmo tempo, porém, permitem uma reconceitualização do sujeito, das relações da
subjetividade com a realidade social, e uma posição de resistência e agenciamento não
externa, mas excêntrica ao aparato sociocultural da instituição heterossexual.
Lembro-me de ter pensado, naquele momento, que a possibilidade de imaginar um sujeito
excêntrico constituído pelo deslocamento e pela desidentificação estava de alguma forma
relacionada à deslocalização geográfica – a de Wittig, da França para os Estados Unidos, a
minha, da Itália para os Estados Unidos. Só mais tarde descobri que uma concepção
semelhante do sujeito estava emergindo na teoria pós-colonial, que seria articulada por Homi
Bhabha em sua noção de hibridação cultural e em estudos recentes sobre o sujeito
transnacional. Porém, já então, na década de 1980, notei o parentesco da “lésbica” de Wittig
com outras figuras de sujeitos excêntricos emergentes dos escritos de mulheres ou lésbicas
racializadas, como Trinh T. Minh-ha, Gloria Anzaldúa, Barbara Smith e Chandra Mohanty. Eu

poderia, portanto, argumentar que os escritos críticos de Wittig anteciparam algumas das
questões que o feminismo pós-colonial atual está enfatizando.
Com Beauvoir e outras feministas de nossa geração, da França, Itália, Grã-Bretanha e
América, Wittig partilhou a premissa de que as mulheres não são um “grupo natural” cuja
opressão seria consequência de sua natureza física, mas sim uma categoria social e política,
uma construção ideológica e produto de uma relação econômica. Muitas de nós na época
compartilhamos uma compreensão marxista de classe e uma análise materialista da
exploração, embora na Europa essa compreensão precedesse o feminismo, enquanto na
América de língua inglesa ela frequentemente seguia e resultava de análises feministas de
classe, gênero. Não preciso falar com vocês sobre a teoria do feminismo materialista, pois
alguns dos que a articularam com mais clareza estão presentes nesta sala. Direi apenas que a
definição da opressão de gênero como categoria política e subjetiva – feita do ponto de vista
específico do oprimido, em luta e como forma de consciência – era diferente da exploração
econômica, objetiva. E que a redefinição também foi compartilhada por outros na América do
Norte, como o grupo de feministas negras do Combahee River Collective, para quem a
opressão de gênero era inseparável da dominação racista.
Mas Wittig foi além: se as mulheres são uma classe social cuja condição específica de
existência é a opressão de gênero, e cuja consciência política lhes permite um ponto de vista,
uma posição de luta e uma perspectiva epistemológica baseada na experiência, então o que
Wittig vislumbrou como objetivo do feminismo foi o desaparecimento das mulheres (como
uma classe). Um curioso paradoxo ocorreu na história do feminismo nos últimos trinta anos
em relação a essa ideia. Voltarei a isso daqui a pouco, mas primeiro deixe-me continuar minha
argumentação. Para poder imaginar como seriam os sujeitos femininos naquela sociedade sem
classes (isto é, sem gêneros), Wittig não propôs um mito ou uma ficção, mas sim referia-se à
existência real de uma “sociedade lésbica” que, embora marginalmente, funcionava
autonomamente a partir de instituições heterossexuais. Nesse sentido, afirmava, lésbicas não
são mulheres: “recusar-se a tornar-se (ou permanecer) heterossexual sempre significou,
conscientemente ou não, recusar-se a tornar-se mulher, ou homem. Para uma lésbica, isso vai
além da mera rejeição do papel de ‘mulher’. É a rejeição do poder econômico, ideológico e
político de um só homem”. Bem, a frase “sociedade lésbica” causou um grande escândalo. Foi
tomada como descritiva de um tipo de organização social, ou como um projeto de uma
sociedade futurista utópica ou distópica como a das amazonas em As guerrilheiras, ou as
comunidades femininas imaginadas por Joanna Russ em seu romance de ficção científica The
female man. Chamaram Wittig de utópica, essencialista, separatista dogmática e até mesmo de
“idealista clássica”. As pessoas diziam: você não pode ser marxista e falar sobre uma
sociedade lésbica. Só é possível falar de uma sociedade lésbica a partir da perspectiva política
liberal da livre escolha, segundo a qual cada um é livre para viver como quiser, e isso, claro, é
um mito do capitalismo.
Com efeito, Wittig mobilizou tanto o discurso do materialismo histórico quanto o discurso do
feminismo liberal, numa estratégia interessante: um contra o outro e cada um contra si
mesmo, demonstrando que ambos eram inadequados para conceber o sujeito em termos
feministas. Para conseguir isso, ela argumentou, o conceito marxista de consciência de classe
e o conceito feminista de subjetividade individual devem ser articulados; essa união é o que
Wittig chamou de “prática subjetiva, cognitiva”, que implica a reconceitualização do sujeito e
das relações da subjetividade com o social a partir de uma posição que é excêntrica à
instituição da heterossexualidade e, portanto, ultrapassa seu horizonte discursivo-conceitual: a
posição do sujeito lésbica. Aqui, então, está o sentido em que Wittig propôs o
desaparecimento das mulheres enquanto classe como objetivo do feminismo.
As críticas vieram de todos os setores do feminismo, incluindo muitos setores lésbicos. Por
exemplo, lésbicas que queriam reivindicar a feminilidade para as mulheres e revalorizar os

traços de carinho, compaixão, ternura em pé de igualdade com os chamados traços de gênero
masculino; essas foram as mesmas críticas que condenaram o já famoso livro de Wittig, O
corpo lésbico – pelo que chamaram de violência. As críticas vieram daqueles que queriam
promover uma cultura de mulheres concebida não como uma classe, mas como uma
comunidade de mulheres identificadas como mulheres, e daqueles que promoviam a ideia de
um “continuum lésbico”, ao qual qualquer mulher que tivesse rejeitado ou resistiu à
instituição do casamento – por qualquer motivo – teria o direito de pertencer e ser considerada
lésbica independentemente de sua escolha, comportamento ou desejo sexual. E as críticas
também vieram daqueles que, ao contrário, consideravam a sexualidade e o desejo centrais
para a subjetividade lésbica, mas argumentavam que a heterossexualidade necessariamente
define a homossexualidade e também dita as formas da sexualidade lésbica e gay, por mais
subversivas ou paródicas que sejam.
Essas críticas falharam em ver que a “lésbica” de Wittig não era apenas um indivíduo com
uma “preferência sexual” pessoal, ou um sujeito social com uma prioridade simplesmente
“política”, mas era o termo ou figura conceitual que definia o sujeito de uma prática cognitiva
e de uma forma de consciência que não são originárias, universais ou coextensivas ao
pensamento humano, como diria Beauvoir, mas sim historicamente determinadas e
subjetivamente assumidas; um sujeito excêntrico instituído em um processo de luta e
interpretação; de tradução, destradução e retradução (como diria Jean Laplanche); uma
reescrita de si em relação a uma nova compreensão da sociedade, da história, da cultura.
Da mesma forma, seus críticos não entendiam que a “sociedade lésbica” de Wittig não
descrevia uma coletividade de mulheres homossexuais, mas era o termo que se referia a um
espaço conceitual e vivencial forjado no campo social, um espaço de contradições, no aqui e
agora, que precisavam ser afirmadas e não resolvidas. Quando ela concluiu “Somos nós que
devemos assumir a tarefa de definir o sujeito individual em termos materialistas”, esse ‘nós’
não eram as mulheres privilegiadas de Beauvoir, “mais bem posicionadas para elucidar a
situação das mulheres”. O ‘nós’ de Wittig foi o ponto de articulação a partir do qual repensar
o marxismo e o feminismo; era – ou assim me parecia – o termo para um modo particular de
consciência feminista que, naquele momento histórico, só poderia existir como uma
consciência de outra coisa; era a figura de um sujeito que ultrapassa suas condições de
sujeição, um sujeito que ultrapassa sua construção discursiva, um sujeito do qual só sabíamos
o que não era: não-mulher. Vamos reler a segunda frase de O corpo lésbico: “O que aconteceu
aqui, ninguém sabe, até agora não tem nome”.
Como já mencionei, há um curioso paradoxo na história do feminismo dos últimos trinta anos
em relação ao apelo de Wittig pelo desaparecimento das mulheres. Porque, de certa forma, as
mulheres desapareceram do léxico dominante dos estudos feministas, pelo menos no mundo
de língua inglesa. Isso começou no final dos anos 1980, a partir da política de identidade e da
crescente participação de mulheres lésbicas e heterossexuais racializadas nos estudos
acadêmicos, quando a palavra mulher começou a sofrer a mesma crítica que havia
desmantelado a noção de Mulher (com inicial maiúscula, a mulher) no início dos anos 80. Nos
anos 90, então, falar de mulher sem adjetivar o termo com modificadores geopolíticos de raça,
etnia ou outros, era assumir uma opressão comum e igualitária baseada em gênero ou sexo,
que deixava de lado formas concomitantes de opressão baseadas em diferenças raciais,
étnicas, de classe etc.
A noção de diferença sexual foi especialmente enfocada e descartada – não sem boas razões –
como inadequada, insuficiente, eurocêntrica e classista. Além disso, na versão do feminismo
pós-estruturalista popularizada na teoria queer e no feminismo acadêmico (onde o termo “pós-
estruturalista” se refere quase exclusivamente à influência dos primeiros trabalhos de Foucault
e Derrida), as mulheres são compreendidas como simulacros do imaginário social, sem
substância psíquica: as mulheres, assim como o gênero, a sexualidade, o sujeito e o próprio

corpo, segundo essa visão, são construções discursivas, lugares de convergência dos efeitos
performativos de poder. Nessa perspectiva, conceitos como a “prática cognitiva e subjetiva”
de Wittig ou a noção de experiência, centrais para a teoria feminista nas décadas de 1970 e
1980, haviam sido rejeitados como essencialistas, naturalizadores, ideológicos, ou pior, pelos
humanistas – que, no contexto da tendência “pós-humanista” ou pós-moderna dos anos 1990,
era definitivamente um termo desqualificador. Portanto, de certa forma, pode-se dizer que as
mulheres desapareceram.
O paradoxo é o seguinte: Wittig, que havia sido justamente a primeira a propor o
desaparecimento das mulheres, foi jogada no campo essencialista, antiquado ou humanista.
Nas palavras de uma filósofa feminista pós-estruturalista, “Wittig defende uma posição além
do sexo que transforma sua teoria em um humanismo problemático baseado em uma
problemática metafísica da presença”. A frase “metafísica da presença”, um sinal da
influência dos primeiros trabalhos de Jacques Derrida, é recorrente em Problemas de gênero
(1990), de Judith Butler, o livro que chamou a atenção de leitores não lésbicas e não
feministas para Wittig – razão pela qual me referirei brevemente a ele aqui.
Comercializado como uma intervenção feminista no campo da filosofia francesa, o livro foi
amplamente citado e traduzido, tornando-se um texto autorizado nos estudos de gênero e na
teoria queer. Sua extensa discussão sobre o trabalho de Wittig no contexto disciplinar da
filosofia efetivamente posicionou Monique Wittig como uma teórica feminista francesa
(juntamente com as duas cujos nomes foram amplamente divulgados em universidades
americanas: Luce Irigaray e Julia Kristeva). No entanto, Butler se opôs à posição radical de
Wittig, que ela interpretou erroneamente como “prescritivismo separatista” – como se Wittig
tivesse argumentado que todas as mulheres deveriam se tornar lésbicas, ou que apenas
lésbicas poderiam ser feministas.
Como nas outras críticas, Butler não entendeu o caráter teórico e figurativo da “lésbica” de
Wittig e seu valor epistemológico. Sendo o sujeito de uma prática cognitiva baseada na
experiência de seu próprio corpo, seu próprio desejo, sua própria desidentificação conceitual e
psíquica do pensamento heterossexual, a “lésbica” de Wittig estava muito ciente do poder do
discurso para configurar a própria realidade social e subjetiva (e, eu acrescentaria, psíquica):
“Se o discurso dos sistemas teóricos modernos e das ciências sociais exerce um poder sobre
nós, é porque ele trabalha com conceitos que nos tocam de perto”, disse Wittig em “O
pensamento hétero” (p. 61 da tradução brasileira).
Butler, não obstante, referiu-se ao sujeito lésbico de Wittig em termos de “sujeito cognitivo”,
dotando-o de fortes conotações cartesianas, e jogou sua teoria na lata de lixo de filosofias
ultrapassadas e descartadas: para quem lê Problemas de gênero, Wittig aparece como uma
existencialista que acredita na liberdade humana, uma humanista que assume a unidade
ontológica do Ser antes da linguagem, uma idealista disfarçada de materialista, e o mais
paradoxal de tudo: uma colaboradora involuntária do regime de normatividade heterossexual.
Isso, na minha opinião, explica o relativo desprezo ou condescendência em relação ao
trabalho de Wittig pelos estudos queer e de gênero até agora. Isto é, até a atenção renovada
dada à obra de Wittig por uma nova geração, aquela que nos trouxe aqui hoje, e que talvez
reabra outro espaço virtual para o pensamento e a escrita lésbica.
Eu gostaria de enfatizar que a originalidade conceitual e a importância radical da teoria de
Wittig estão inscritas em sua obra ficcional e não em “O pensamento hétero”: em As
guerrilheiras, a figura da lésbica como sujeito de uma prática cognitiva, que possibilita a
reconceituação do social e do próprio conhecimento de uma posição excêntrica à instituição
da heterossexualidade, aparece na prática da escrita como consciência da contradição (“a
língua que você fala é feita de palavras que estão te matando”); uma consciência de escrever,
viver, sentir e desejar na não coincidência da experiência e da linguagem, nos interstícios da

representação, “nos intervalos que os mestres não souberam preencher com suas palavras de
proprietários”. E também está aqui na primeira página de O corpo lésbico.
Uma das primeiras a entender isso foi Elaine Marks, que, em seu ensaio de 1979, “Lesbian
Intertextuality”, escreveu: “Em O corpo lésbico, Monique Wittig criou, por meio do uso
incessante de hipérboles e da recusa em usar códigos corporais tradicionais, imagens
suficientemente provocativas para não ser reabsorvidas pela cultura literária masculina. De
fato, o tema da jornada de Wittig na ficção corresponde à sua jornada formal como escritora.
Ambas são viagens sem destino fixo, sem fim, acrescidas de um autodeslocamento que por
sua vez desloca as figurações textuais das mitologias clássica e cristã, dos heróis homéricos e
de Cristo, nos gêneros literários ocidentais, e as reinscreve de outra forma: A divina comédia
(Virgile, non) e Dom Quixote (A viagem sem fim), o épico (As guerrilheiras), o lírico (O
corpo lésbico), o Bildungsroman (The Opoponax), o dicionário enciclopédico (Esboço para
um dicionário dos Amantes), e posteriormente a sátira (Paris-la-politique), o manifesto
político e o ensaio crítico (O pensamento hétero)”.
Em O corpo lésbico, a odisseia do sujeito é uma viagem dentro da linguagem, dentro do corpo
da cultura ocidental, uma temporada no inferno. “Ninguém desconhece o que aconteceu aqui,
não tem nome até agora.” Aqui, refere-se ao mesmo tempo aos acontecimentos descritos na
história e ao processo de sua inscrição, ao processo de escrita: o desmembramento do corpo
da mulher membro por membro, órgão por órgão, secreção por secreção, é ao mesmo tempo a
desconstrução termo a termo do corpo anatômico feminino representado ou mapeado pelo
discurso patriarcal. A viagem e a escrita ignoram o mapa, vão além das palavras do mestre
para expor os intervalos, as lacunas na representação, e penetram nos interstícios do discurso
para reimaginar, reaprender, reescrever o corpo em outra economia libidinal. E, no entanto, a
viagem e a escrita não produzem um mapa alternativo, um corpo feminino completo, saudável
e coerente ou uma narrativa teleológica de amor entre mulheres com final feliz, até que a
morte nos separe. Pelo contrário, a morte assume-se no corpo lésbico, inscreve-se nele desde
o início. “Diga adeus m/i muito linda”: “O que aconteceu aqui” é a morte, a lenta
decomposição do corpo, o fedor, os vermes, o crânio aberto… A morte é aqui e agora, porque
é a companheira inseparável e a própria condição do desejo.
Repetidas vezes, ao longo destes anos, voltei a este texto extraordinário que não pode ser lido
de uma vez, que se recusa a ser “consumido” de uma vez por todas. Que o livro é sobre desejo
(desejo não fálico, com certeza) sempre ficou claro para mim. Se o Orlando de Virginia Woolf
foi considerado a carta de amor mais longa da história (para Virginia Sackville-West), O
corpo lésbico, pensei, poderia ser considerado o poema de amor mais longo da literatura
moderna. Mas o que só mais tarde ficou claro para mim é que The Lesbian Body não é sobre
amor; é uma extensa imagem poética da sexualidade, uma canção ou um vasto afresco, brutal
e chocante, sedutor e aterrorizante.
Esclareço: não me refiro à sexualidade no sentido foucaultiano de uma tecnologia que produz
“sexo” como a verdade dos próprios sujeitos burgueses. Refiro-me ao sentido da concepção
freudiana da sexualidade como o impulso psíquico que rompe a coerência do eu; um princípio
de prazer que se opõe, desarma, resiste ou compromete a lógica do princípio de realidade, ou
seja, a lógica simbólica do nome do pai, da família, da nação e de todas as demais instituições
da sociedade que se baseiam no macro – instituição e presunção da heterossexualidade. Freud
viu que essas duas forças, o princípio do prazer e o princípio da realidade, estavam
simultaneamente ativas na psique e em guerra uma com a outra. Quando posteriormente as
reconfigurou em uma escala que transcendia o indivíduo, chamou uma de Eros e a outra de
pulsão de morte. Mas é esta última, a pulsão de morte, e não o Eros platônico, o agente de
ruptura, desengajamento, negatividade e resistência que ele identificou pela primeira vez na
pulsão sexual: é a pulsão de morte, e não Eros, que está associada mais estreita e
estruturalmente com a sexualidade na metapsicologia freudiana, em sua teoria da psique.

Essa batalha entre duas forças psíquicas é o que agora vejo no texto de Wittig: sua inscrição
do enigma da sexualidade e do desejo não-fálico, não-edipiano. E talvez seja isso que sempre
causou meu fascínio por O corpo lésbico e minha necessidade de voltar a ele repetidas vezes:
o enigma que o texto coloca e o enigma que o texto é.

Conferência de Teresa de Lauretis publicada em Parole de queer. Disponível em:
https://paroledequeer.blogspot.com/2023/02/cuando-las-lesbianas-no-eramos-
mujeres.html#more

Tradução: Luiz Morando.

1 As guerrilheiras é um romance de Monique Wittig publicado em 1969. No Brasil, existe uma tradução
publicada pela Ubu Editora em 2019.
2 Paris-la-Politique et autres histoires é um conjunto de relatos de Monique Wittig publicado em 1985.
3 Obra de Wittig publicada em 1985.
4 La pensée straight foi traduzido no Brasil pela editora Autêntica em 2022 (O pensamento hétero e outros
ensaios).
5 O corpo lésbico é um romance de Monique Wittig de 1973. No Brasil, existe uma tradução publicada pela
editora A Bolha, em 2019.

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