“Muitos dizem que somos doentes. Por isso, tornei-me ativista.”

Sakris Kupila protagoniza uma campanha da Anistia Internacional que denuncia o Trans Act, lei que garante direitos aos transexuais na Finlândia, mas impõe a esterilização como requisito para reconhecer a identidade de gênero.

 

Na Finlândia, para poder mudar de gênero legalmente e receber atenção médica especializada, as pessoas trans têm que se submeter durante um ano a um acompanhamento psiquiátrico a fim de obter o diagnóstico de “transtorno de transexualidade”. Esse requisito é similar ao que estabelece a lei espanhola, que ainda exige dois anos de hormonização, o que pode afetar a fertilidade. Mas a lei finlandesa explicita que a pessoa trans deverá submeter-se a um tratamento de esterilização, isto é, a lei impõe um tratamento médico invasivo para obter reconhecimento legal.

Sakris Kupila está acostumado quando lhe perguntam como isso pode ocorrer em um país escandinavo que se destaca por suas iniciativas pioneiras em educação ou direitos sociais. Esse estudante de Medicina, de 21 anos, está correndo meio mundo em defesa dos direitos humanos, o que inclui a livre expressão da identidade. Em março passado ele veio a Madri, onde apresentou sua reivindicação em uma palestra na sede da Anistia Internacional. Essa organização está impulsionando a campanha de reconhecimento da transexualidade que Kupila protagoniza. Ele conversou com Pikara antes da conferência, em um curto espaço de tempo entre sua aterrissagem e a noite na cidade.

Com maneiras requintadas e atitude cortês, esse finlandês mostra equilíbrio e experiência ao explicar a discriminação transfóbica que tem sentido na pele sob a forma de exclusão, intimidação e a sensação de ser relegado a “uma categoria inferior de ser humano”. Ele descobriu-se transexual com 16 anos: “Antes, eu não sabia o que era ser trans, porque ninguém me havia contado o que isso significava. Nem na escola, nem em qualquer lugar; apenas te contavam que existem homossexuais, lésbicas e bissexuais. Então, naquele momento e depois de pesquisar bastante na internet, por fim me dei conta.” Ele tinha uma visão muito antiquada da transexualidade. “Acreditava que fossem as ‘drag queens’ de discotecas estadunidenses”, ele sorri. Com essa tempestade emocional e mais dúvidas que certezas, Kupila passou uma adolescência complicada. Antes de transicionar, sentia-se fora de lugar. Separado do resto. Assim que o processo se iniciou, ele começou a ser repudiado até mesmo pelas pessoas mais próximas.

“Venho de um povoado muito pequeno, onde a vizinhança tem a cabeça extremamente fechada, e isso foi muito difícil. Passei por ameaças, assédio e muitos problemas que causaram um desgaste psicológico”, diz ele. E continua: “Por isso me mudei para Helsinki, a capital. Ali, as pessoas me aceitam e não tenho que dar explicações. Mas quando volto ao povoado, percebo que sou ‘o transexual’. Quando comecei a falar sobre isso, era quase o único. Agora já se ouvem outras vozes. Mas tive momentos muito ruins. Eu sabia quem evitar. As pessoas assoviavam para mim, me cuspiam, diziam coisas para meus pais. Até amigos próximos pararam de falar comigo. Perdi minha sensação de segurança”, lembra com pesar.

Frequentemente, Kupila se lembra desse passado recente, que ainda reverbera. “Isso custou muito a meus pais. Agora, no entanto, minha mãe – que é professora – fala sobre transexualidade em suas aulas e cada vez que apareço em algum lugar, ela toca no assunto”, comenta. Sentir essa falta de empatia ao seu redor o aproximou da militância social. “Na Finlândia éramos invisíveis. Muitos dizem que somos doentes. Por isso, tornei-me ativista”, diz ele.

Não foi apenas a necessidade de uma pedagogia sobre a transfobia social o que o levou à luta. O golpe definitivo foi passar pelas avaliações de psicólogos, médicos e assistentes sociais para obter o certificado de disforia de gênero, com o qual pode alterar a opção de sexo em seu registro de identidade. “As entrevistas incluem perguntas muito íntimas sobre sexualidade. É muito duro e injusto”, suspira Kupila.

O protocolo estabelecido por lei inclui a exigência de passar por um programa de esterilização forçada ou confirmar que “por alguma razão” você é estéril. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas denunciou esse requisito, mas o governo finlandês se recusou a modificar a lei conhecida como ‘Trans Act’, aprovada em 2003. O ativista se declara “muito decepcionado”.

Uma letra em um papel. Poder mudar o M de masculino pelo F de feminino ou o contrário. Esse pequeno detalhe condiciona a vida e leva muitas pessoas adiante. “Para as pessoas transexuais, a identidade não é nem mais nem menos que ter uma vida normal”, explica. “Pedem a carteira de identidade no colégio, na entrevista de emprego, viajando, comprando bebida. Em todos esses lugares podem ver que o documento não corresponde a você. E você não sabe como quem te pede a carteira vai reagir, o que te coloca em uma situação muito ruim”, detalha. “Tive sorte de não terem me parado nas fronteiras, mas sempre se vive no limite e com uma insegurança muito estressante. Imagine viver assim dez anos: é uma loucura”, acrescenta.

Esta entrevista aconteceu semanas depois de Ekai, um jovem trans de Bizkaia, de 16 anos, ter cometido suicídio enquanto esperava o tratamento hormonal e o reconhecimento de sua identidade de gênero. “Eu era um adolescente desesperado, poderia ter sido mais um caso de suicídio”, reconhece Kupila. Contudo, o ativista comemora que a mídia ecoa seus apelos para que os direitos humanos sejam respeitados e confia que, quanto mais pessoas trans se tornarem visíveis, mais consciência social será criada em torno de suas demandas. Ele menciona referências positivas, como a Noruega – que, em 2016, permitiu a mudança de gênero a partir dos seis anos de idade com um procedimento simples – ou a Argentina – que facilita a inscrição de qualquer identidade desejada no registro e ordena aos serviços de saúde que todos os tratamentos estejam incluídos. “Creio que as coisas mudarão muito, mas há muitas pessoas que não mudarão nunca”, acrescenta como conclusão.

 

Entrevista de Sakris Kupila a Alberto G. Palomo publicada em Pikara magazine on-line, em 26 de junho de 2016. Disponível em: http://pikaramagazine.com/2018/06/sakris-kupila-transexualidad-finlandia/

Tradução: Luiz Morando

Assinaturas-Luiz

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