Entoar o direito ao aborto em uníssono

O primeiro encontro foi algo informal, para divulgar a iniciativa e conversar com comunicadoras e conhecidas durante um café. Kika Fumero, Cristina Fallarás e Luciana Peker explicaram a importância do que estava por vir. Era Madri no início da primavera. E o que veio a seguir foi um arsenal de conferências de imprensa, apresentações, rodas de conversa e eventos em diferentes partes do Estado espanhol para partilhar uma iniciativa comunitária que vinha fermentando há meses.

O objetivo perseguido pelo movimento internacional Mi voz, mi decisión é obter um milhão de assinaturas antes de 5 de junho. Querem antecipar-se aos possíveis resultados da extrema-direita nas eleições europeias e unir forças para garantir que todas as mulheres que vivem na União Europeia tenham a possibilidade de fazer um aborto de forma segura, gratuita e acessível. Associações, grupos, organizações e ativistas de oito países estão envolvidos neste objetivo: França, Espanha, Irlanda, Áustria, Croácia, Finlândia, Polônia e Eslovênia. Foi este último que tomou a iniciativa de propor a Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE) a ser apresentada à Comissão Europeia. A partir daí, a instituição terá um prazo máximo de seis meses para oferecer uma resposta a este respeito, com conclusões jurídicas e políticas que justifiquem a decisão e uma lista oficial com as medidas que se propõe adotar.

A iniciativa continua a tornar visível uma questão de longa data. O Parlamento Europeu, a pedido do grupo liberal, da esquerda e dos sociais-democratas, debateu em diversas ocasiões o direito ao aborto. Em abril, foi aprovado, com 336 votos a favor, 163 contra e 39 abstenções, a inclusão do reconhecimento do direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Embora não seja vinculativo, o texto pede aos Estados-Membros que reformem os tratados da União Europeia para que a Carta inclua no seu artigo 3º o direito de cada pessoa “à autonomia física e ao acesso livre, informado, pleno e universal à saúde e aos direitos reprodutivos, bem como todos os serviços de saúde relacionados, incluindo o acesso ao aborto seguro e legal, sem discriminação”.

Para efeitos práticos, nada mudou. Para reformar a Carta dos Direitos Fundamentais da UE e incluir o aborto, é necessário o acordo unânime de todos os Estados-Membros. Alguns apoios são inquestionáveis, como o da Espanha ou França – que em 4 de março de 2024 se tornou o primeiro Estado da União a incluir o direito ao aborto na sua Constituição. Mas também há países que nunca dariam luz verde a esta mudança, como Malta, Itália ou Hungria, entre outros.

“É uma forma de antecipar o que está por vir: um movimento de direita e extrema-direita que atacará os direitos das mulheres”, explica Cristina Fallarás, uma das coordenadoras do movimento. E acrescenta: “Já estamos vendo isso na Argentina, mas também chegará aos Estados Unidos e à Europa. E os primeiros direitos atacados são aqueles que têm a ver com os nossos corpos e, particularmente, com o aborto.”

Estima-se que, em toda a UE, mais de 20 milhões de mulheres não têm acesso garantido ao aborto. Essa iniciativa levanta quatro situações em que as mulheres poderiam continuar a avançar. O primeiro são os países onde a interrupção voluntária da gravidez é diretamente proibida, como Malta e Polônia. Também se concentra naqueles como Áustria ou Alemanha, onde a interrupção da gravidez é permitida com condições prévias, é ‘legal’ mas não gratuita. O terceiro caso é o dos países onde, apesar de ser legal, o aborto não é acessível em muitas regiões, como Croácia e Itália, devido à “objeção de consciência” generalizada. Por último, a iniciativa considera o caso das mulheres em situação de especial vulnerabilidade ou pertencentes a comunidades onde o acesso ao aborto apresenta dificuldades específicas, como as mulheres migrantes em situação administrativa irregular, para as quais a interrupção voluntária da gravidez muitas vezes não é acessível nem segura.

“Queremos que a UE, através de programas orçamentados, assegure e garanta que todas as mulheres que vivem na Europa, mesmo as que estejam num país onde o aborto não é legal, possam viajar para outro e ter livre acesso ao aborto. Onde é legal e não gratuito, que se torne gratuito. Que se na Espanha a interrupção voluntária for de até 14 semanas e a mulher tiver 15 anos, ela poderá ir para a França e lá o direito ao aborto será gratuito. E, claro, que os colegas que se encontram em situação vulnerável possam viajar e ter acesso ao aborto gratuito e seguro. E aqui ‘seguro’ significa que as instituições europeias garantem que quebram essas barreiras, esse medo de ser deportado ou repatriado”, explicou Kika Fumero, outra das coordenadoras da Mi voz, mi decisión, durante a apresentação da iniciativa em Valência.

Normas com classificação constitucional

Proteger o aborto com normas constitucionais tornaria difícil a tomada de decisões após as eleições europeias face a uma possível nova composição parlamentar que não é favorável à expansão dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Implicaria também um controle mais exaustivo do financiamento proveniente da Europa e destinado às ações dos chamados grupos pró-vida. Recentemente, o Parlamento italiano aprovou um plano para “incentivar a maternidade” com uma bateria de propostas, liderada pela sua presidente Giorgia Meloni, que incluía facilitar as autorizações relevantes para grupos antiaborto entrarem em clínicas onde são realizadas interrupções de gravidez e “oferecer alternativas ao aborto.”

Até lá, e embora a porta esteja aberta à violação dos direitos humanos das mulheres, a Europa teria de ficar à margem, uma vez que as medidas de saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, são competência nacional. O que acontece é que este pacote faz parte de um projeto financiado com fundos de um plano de recuperação pós-pandemia de 2020 da União Europeia, o Next Generation. Meloni abriu a porta ao financiamento de grupos antiaborto – ou “grupos de apoio à maternidade”, como ela os chama – em todo o país. A presidenta italiana tem sido criticada, entre outros cargos políticos, pela ministra de Igualdade do Estado espanhol, Ana Redondo, que escreveu na rede social X: “Permitir o assédio organizado contra as mulheres que querem interromper sua gravidez é escavar um direito reconhecido por lei. É a estratégia da extrema-direita: intimidar para reverter direitos, impedir a igualdade entre mulheres e homens.”

Tecer uma rede de alianças de apoio é um passo importante para desenvolver estratégias comuns e continuar a proteger os direitos sexuais e reprodutivos. Recentemente, durante a visita do presidente argentino Javier Milei a Madri, juntamente com outros representantes da extrema-direita, o verde primavera foi exibido e ativistas de diferentes nacionalidades responderam cantando a sua mensagem em uníssono. A eslovena Nika Kovač, coordenadora do Minha voz, a minha escolha em âmbito internacional, foi contundente: “Os fascistas de todo o mundo estão ligados e trabalham juntos, fazem parte da mesma coisa. A única maneira de derrotá-los é permanecermos unidos, além das fronteiras.” Ainda faltam alguns dias para assinar e apoiar esta iniciativa.


Artigo de Esmeralda R. Vaquero publicada em Pikara magazine em 29 de maio de 2024.
Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2024/05/entonar-al-unisono-el-derecho-al
aborto/

Tradução: Luiz Morando.

O movimento Mi voz, mi decisión promove uma campanha de coleta de assinaturas em oito 
países europeus para obter o aborto legal, gratuito e acessível na União Europeia. O objetivo é 
conseguir pelo menos um milhão de apoios antes das eleições europeias.

Deixe um comentário