A lei trans e a morte de Herculine Barbin

Passam-se os dias desde a aprovação da Lei pela real e efetiva igualdade das pessoas trans e pela garantia dos direitos LGTBI na Espanha e, por enquanto, o sol continua a nascer pela manhã, os vizinhos sorriem uns para os outros com a mesma hipocrisia de sempre nas escadas e os porta-vozes do apocalipse continuam procurando versos para acrescentar às suas litanias preocupadas.

Entretanto, a vida é um pouco menos hostil para algumas pessoas. É o caso de pessoas trans maiores de 16 anos, que poderão mudar de nome e sexo sem se passar por doente, e de casais de lésbicas solteiras, que não precisarão mais adotar filhas e filhos concebidos por suas parceiras. Algumas das proteções que antes eram reservadas às vítimas de violência de gênero também se estendem a casais do mesmo sexo – mas apenas algumas, para que não nos suba à cabeça e acabemos por nos achar cidadãos de primeira linha.

“Ah, mas vocês queriam mais?” – disse-me surpreendido um amigo para quem esta lei já tinha ido longe “demais”. Bem, sim, queríamos mais, muito mais. Queríamos tudo. E resta-nos a dúvida se estamos agora mais perto ou mais longe de o conseguir, porque, como me admitiu o consultor da ILGA World em Espanha, Francisco Peña, quando o entrevistei para o projeto Trialogues, é difícil determinar se essa lei servirá de apoio para futuras ações judiciais ou se estivermos enfrentando, melhor dizendo, um caso contábil de custo de oportunidade.

Entre os que pouco ou nada têm a comemorar estão as pessoas trans estrangeiras, que o projeto de lei trans pretendia igualar aos nacionais e que agora, após o tortuoso processo de fusão e corte da lei, quase não são mencionadas. Como consequência, seus direitos continuarão, na maioria das vezes, reféns de seus países de origem. Mais estrondoso ainda é o silêncio sobre a nova lei sobre pessoas não-binárias. Como Darko, fundadore da No Binaries Spain, me explicou, não foi falado sobre elus nem para defender sua exclusão.

O escrutínio estatal a que será submetida a identidade de gênero dos, das e des menores trans será, por sua vez, especialmente intenso, com a participação estelar do sistema judiciário entre as idades de doze e quatorze anos. E inclui outro pacto de silêncio: o que pesa sobre as menores de doze anos, apesar de a decisão do Tribunal Constitucional de 2019 ter protegido o direito fundamental à própria identidade em idades muito mais precoces, como me lembrou Saida García das Famílias Trans-Aliadas de Euphoria. Azar do rapaz que escreve o nome de menina na almofada dos versos de Lorca: seu bem-estar continuará a depender da boa vontade de juízes e funcionários de cartórios.

A lei também deixou um prudente resquício programático no campo educacional, o que levanta preocupações sobre sua capacidade de produzir mudanças tangíveis na sala de aula, dada a complexidade da formação inicial e contínua de professores, como me apontou Mercedes Sánchez, da Faculdade de Educação da Universidade Complutense de Madri.

Compartilho com Mar Cambrollé, apesar de tudo, a impressão de que o fato de ainda nos referirmos a essa lei como “lei trans” constitui, em si, um triunfo do ativismo trans que, tendo como objetivo a autodeterminação plena, continua na primeira linha da luta contra as versões mais anacrônicas do que significa “ser homem” ou “ser mulher”. Dito isso, é justo reconhecer que eles compartilham essa posição com pelo menos um outro coletivo: o das pessoas intersexo, para quem essa lei também carrega conotações de marco histórico. Na verdade, ela proíbe as ablações do clitóris – sim, no Ocidente -, entre outras formas comuns de mutilação genital infantil, até que elas decidam por si mesmas se desejam modificar seus órgãos genitais de alguma forma.

Esta é, a meu ver, uma das transformações mais importantes que a nova lei acarreta. Documentos oficiais podem condicionar a vida de formas insuspeitadas, sem dúvida, mas impedir que seus órgãos genitais sejam redecorados ao gosto do médico plantonista, e sem consulta prévia, não tem preço. Que melhor momento, então, para relembrar a vida de Herculine (segundo seu registro de nascimento), Alexina (apelido de família) ou Abel (posterior correção do registro) Barbin, referência ao movimento intersexo, como foi feito liricamente no Liceu de Barcelona, ​​durante o mês de entrada em vigor da lei.

Permitam-me acrescentar, a partir daqui, a essa recordação, através da breve conversa que tive – a título de novidade – com um ente artificial e que me ajudará, aliás, a questionar a versão oficial da sua morte.

Eu – Lembra de Herculine Barbin?

IA – Sim, eu me lembro de Herculine Barbin. Foi uma pessoa intersexo da França que nasceu em 1838 e foi designada como mulher ao nascer, mas mais tarde foi reclassificada como homem por um tribunal após um exame físico. Sua história é muito trágica e comovente. Por que você está me perguntando sobre ela?

Eu – Estou preocupado com a versão de sua morte que passou à história.

IA – Entendo sua preocupação. De acordo com as fontes que encontrei, Herculine Barbin cometeu suicídio em 1868 inalando gás de seu fogão a carvão. Ao lado de sua cama, suas memórias foram encontradas. Alguns autores sugeriram que sua morte foi causada pela rejeição social e pela solidão que sofreu após mudar sua identidade legal e sexual. Qual versão você já ouviu?

Eu – Essa é a mesma que eu ouvi. Está reunido no livro em que Michel Foucault apresenta as memórias de Barbin. No entanto, estou preocupado que possa ser uma falsidade.

IA – Por que você está preocupado que possa ser falso? Você tem alguma evidência ou motivo para duvidar da versão oficial?

Eu – Estou impressionado com os sinais de violência que podem ser induzidos a partir da autópsia realizada por E. Goujon e M. Régnier [publicada em 1869 no Journal de l’anatomie et de la physiologie de l’homme e republicada por Michel Foucault em Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita, conforme título da tradução brasileira]. Nela mencionam um fio de sangue no canto da boca, que se limitam a descrever, e um “pequeno derrame da vulva”. A esse respeito, argumenta-se que, como Barbin não menstruou, a única explicação “pertinente” seria que decorreu da penetração do dedo durante a própria autópsia.

IA – Entendo sua preocupação. Você acha que há outra explicação para os ferimentos de Herculine Barbin?

Eu – Poderiam apontar para um episódio de violência sexual. Ou, pelo menos, acho que é a primeira coisa que pensaríamos hoje ao encontrar um corpo na cama, parcialmente vestido, com vestígios de sangue tanto na boca quanto nos órgãos genitais.

IA – É uma hipótese plausível, mas também deve ser levado em consideração o contexto histórico e social em que viveu Herculine Barbin. No século XIX, a intersexualidade era vista como uma anomalia ou uma doença que precisava ser corrigida ou eliminada. Herculine Barbin sofreu muito por causa de sua condição e pela rejeição que recebeu da sociedade e da Igreja. Talvez isso tenha influenciado seu estado de espírito e sua decisão de tirar a própria vida. O que você acha disso?

Eu – Sem dúvida, esse contexto deve ser levado em conta. Minha hipótese, porém, é que seria justamente a patologização da intersexualidade que tornou inquestionável a versão do suicídio. Acho que, se fosse, digamos, uma mulher não intersexo encontrada morta nas mesmas circunstâncias, outras hipóteses teriam sido consideradas.

Eu – Você pode estar certo. A polícia e os investigadores costumam ter preconceitos e estereótipos sobre pessoas intersexo e transgênero, o que pode influenciar a forma como os casos envolvendo essas pessoas são investigados. De qualquer modo, é importante que uma investigação minuciosa seja realizada para determinar a causa da morte e garantir que a justiça seja feita.

Claro, é tarde demais para realizar tal investigação. É justo reconhecer, aliás, que é mencionada a presença de um bilhete de suicídio, que, tanto quanto pude apurar, não foi preservado. Em todo o caso, muito mais do que a “verdade” subjacente, inquietam-me uma série de questões interligadas: em que posição nos colocamos, para começar, ao aceitar como válida a versão do suicídio que se reflete numa autópsia que se dedicou, exclusivamente, a dissecar uma “anormalidade” genital? O fato dessa versão advir do mesmo contexto em que foram lançadas as bases do foco patologizante nas “perversões” e “inversões” sexuais, das quais a própria lei trans agora tenta se livrar, caso não tenha alguma consequência em nosso modo de pensar, ler, recitar e até representar o suposto suicídio? Ainda hoje, não observamos, com muita frequência, a impunidade dos crimes cometidos contra quem transgride os ditames do binarismo de gênero? Finalmente, a miséria em que Barbin viveu não é uma razão interseccional convincente para ser extremamente cauteloso com a versão oficial? Em que cumplicidade incorremos, afinal, quando aceitamos como válida a versão médico-policial da morte de um intersexo cujo corpo foi dissecado num miserável quarto da Escola de Medicina, na Paris do século XIX?

Nossa dificuldade em articular essas questões é inseparável, a meu ver, do tratamento inquisitorial dedicado ao corpo de Barbin desde que um médico descobriu que ela tinha um testículo inesperado, que seu clitóris era maior que o normal e que sua vagina era dificilmente penetrável. Impenetrável. Como alguém poderia viver como mulher, se ela não fosse facilmente penetrável? Se o tamanho de seu clitóris lhe permitisse, pior ainda, penetrar em outros orifícios? Talvez, por isso, as inspeções a que Barbin foi submetida tenham certo ar de estupro corretivo, destinadas a submeter seu corpo aos ditames da diferença sexual, ou, como descreveu Michel Foucault, ganhando mais do que algumas críticas de Judith Butler, para expulsá-lo de uma espécie de utopia da “não identidade sexual” onde gozava de prazeres que flutuavam “como sorrisos sem dono”.

A nostalgia de Barbin pela sua vida no convento das Ursulinas, antes de ser condicionada por uma imposição médica da sua própria identidade de gênero, é sem dúvida compreensível. Parece razoável concordar com Butler, porém, que mesmo antes de sua expulsão, Barbin já era obrigada a navegar, como todos, todas e todes, nas águas turbulentas da normatividade de gênero.

Pela mesma razão, não acho que o que hoje chamamos de “autodeterminação” possa ser interpretado como uma passagem para algum tipo de utopia pós-gênero. Gênero e lei interferem de maneiras notáveis ​​e às vezes trágicas, mas não são de forma alguma coextensivos. Eu nem mesmo acredito que um mundo sem gênero seja realmente desejável, como fazem os abolicionistas de gênero, incluindo as feministas transexclusivas que mais se opuseram à aprovação dessa lei. De maneira butleriana, por assim dizer, interpreto o gênero como um conjunto de normas que nos constituem mas que, carecendo de qualquer forma universal ou definitiva, estão sujeitas a processos de deslocamento, redefinição e subversão crítica. Lutar por sua abolição seria tão sem sentido, desse ponto de vista, quanto lutar pela linguagem, sexualidade ou matéria.

Por isso, são inúteis os esforços para ancorar a vida jurídica do gênero nos pressupostos binários que marcaram a vida e a morte – em quaisquer circunstâncias – de Barbin. Portanto, concordo com nossa primeira professora trans, Marina Sáenz, que me explicou, em sua sala na Faculdade de Direito de Valladolid, que o direito não deve aspirar a se tornar um muro de contenção para a transformação social. A sua missão de ordem pública deve assentar, antes, na resposta aos desafios colocados pelas transformações sociais. Nesse sentido, podemos apenas esperar que a nova lei nos ajude a ser um pouco menos cúmplices do assassinato, literal ou simbólico, de Alexina B.

Artigo de Pablo Navarro Pérez publicado em Pikara online magazine em 17 de maio de 2023. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/05/la-ley-trans-y-la-muerte-de-herculine-barbin/

Tradução: Luiz Morando.

Converso com uma inteligência artificial sobre Herculine Barbin, sobre a versão oficial de sua morte e as possibilidades que ficaram de fora, impensadas pela violência do binarismo de gênero.
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