O legado dos Panteras Negras: milícias LGTBIQA+ nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos, desde 2020, foram criadas ou fortalecidas dezenas de organizações políticas de esquerda que utilizam a luta armada. Os casos mais conhecidos são os do movimento Antifa e da Socialist Rifle Association, mas não os únicos. O site Counter Extremism Project (organização sem fins lucrativos contra o extremismo violento) reúne informações sobre alguns deles: John Brown Gun Club (esquerda pró-militarização), Animal Liberation Front (animalistas), Jane’s Revenge (militantes pró-aborto), Youth Liberation Front (juventude do anarquismo), Yellow Peril Tactical (antirracistas asiático-americanos). Outros, talvez mais surpreendentes deste lado do Atlântico, são constituídos por milícias criadas por e para a comunidade LGTBIQA+. Seus nomes já refletem certa contradição entre o imaginário antibélico tradicional dessa luta e o léxico militarista: UnicorneBNA2, Soup and Rifles Collective, Iron Front USA, Pink Pistols National, Armed Equality, Red Pine Community Defense etc. Alguns desses grupos são difíceis de rastrear devido à sua natureza descentralizada e não hierárquica; outros, como o Tenacious Unicorn Ranch, são formados por grupos de convivência estáveis. O antecedente imediato de todos eles é o Partido dos Panteras Negras, reminiscente dos grupos antifascistas europeus dos anos 1930 e 40.

Em suas contas no Twitter ou no Mastodon, encontram-se proclamações como “autodefesa deve ser democratizada”, “igualdade armada é igualdade real”, “direitos armados são direitos queer”. Armed Equality publica: “É importante que você entenda que estamos em guerra e que existem milhões de humanos andando neste planeta que prefeririam que você não existisse a se educar.” Os Pink Pistols têm um manifesto que diz que “o direito às armas é um direito queer […] As armas não podem preservar vidas queer se pessoas queer não as portarem […] Portanto, o direito às armas é pró-queer […] Viver e amar como se quer, desde que não prejudique ninguém, também é um direito natural. – O direito às armas garante que todos os itens acima sejam respeitados”. O Soup and Rifles Collective explica: “O fascismo quer eliminar as pessoas queer […] Nós dizemos ‘não’. Não seremos apagados, não haverá genocídio. Foda-se”. Diante dessas mensagens, vale a pena perguntar o que está acontecendo na vida cotidiana dos estadunidenses para que certas minorias sintam que devem se armar. O debate, na verdade, tem a ver com a possibilidade de uma guerra fria civil ou de uma paz preocupantemente tensa em algumas partes do país. Aqueles que afirmam estar em guerra acreditam que as armas não podem cair apenas de um dos lados.

Para imaginar o clima atual nos Estados Unidos, vale a pena dar uma olhada na foto de campanha do candidato ao Senado pelo Missouri convocando uma caçada contra aqueles que se dizem republicanos, mas não participam do que ele chama de “a verdadeira luta”. Em outras palavras, poderíamos traduzir o objetivo a ser demolido desse senhor como “a direita covarde”. (#RINOHUNTING, Republicans In Name Only Hunting).

Desde a tomada do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, a intimidação odiosa proliferou em cada esquina. Agora sabemos que tentar tomar um Capitólio ou um Parlamento é apenas o começo de uma realidade cada vez mais abertamente violenta. As ameaças se normalizaram em pelo menos três polos: violência política contra representantes públicos, coerção cotidiana contra trabalhadores díspares, como equipes de direção escolar, professores universitários, assistentes sociais, funcionários públicos etc.; e, por fim, a intimidação concreta contra a vida de quem participa de eventos LGTBQIA+. Esses focos se somam à violência estrutural racista e sexista que os movimentos Black Lives Matter e #Metoo vêm denunciando há quase uma década.

A supremacia armada nos Estados Unidos só cresceu. Fica claro para quem acompanha um pouco a imprensa que a grande maioria dos tiroteios indiscriminados é feita por homens cis, jovens, brancos e heterossexuais. Quando lemos essas notícias sobre o que nos Estados Unidos chamam de “terrorismo doméstico” ou “terrorismo interno” (domestic terrorism), pensamos que se trata de pessoas que estão sozinhas, mas não é assim. Eles têm toda uma infraestrutura. Os pistoleiros que se envolvem nesses atos pertencem a algum tipo de comunidade que lhes dá asas, os treina e os protege. Conhecemos alguns dos nomes das milícias por trás dos homens armados que rotineiramente aparecem em todos os atos políticos, desde comícios, votações, protestos, reuniões civis e até reuniões escolares. São os Proud Boys, com suas caçadas periódicas, os Oath Keepers, os Three Percenters e outros supremacistas brancos se juntando aos que nunca se foram, como a Ku Klux Klan. Essa estrutura paramilitar de extrema-direita se espalha pelos meios de comunicação de massa, redes sociais e laços familiares, alcançando conexões diretas com políticos atuantes. É o caso do assassino do Colorado, que matou cinco pessoas e feriu 25 em um bar LGTBIQA+ no dia 19 de novembro de 2022. O pai desse sujeito alegou que preferia que o filho fosse assassino do que viado. Seu avô ocupa o cargo de representante de um distrito de San Diego.

A violência exercida por grupos de extrema-direita é, segundo o FBI, a maior ameaça que a União Federal enfrenta atualmente. Eles calculam que em 2021 houve 2.700 atos de terrorismo doméstico a mais do que em 2020. Também em números do FBI, a intimidação contra membros do Congresso bateu recorde e chegou a 9.600 em 2022. A violência política conseguiu paralisar a atividade de alguns políticos pró-direitos LGBTIQA+, como o prefeito de Oklahoma. Embora, sem dúvida, o caso mais grave seja o do assaltante que conseguiu entrar na residência particular da ex-presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, a primeira mulher a ocupar esse cargo, apontada pessoalmente durante décadas por seus adversários. Com o apoio à violência política dobrando durante o mandato de Trump, muitos democratas estão começando a acreditar que as armas são necessárias.

É evidente que o ex-presidente continua na ativa e que seu raio de ação não é apenas nacional. Pela conta no Twitter da Armed Equality, eles registraram como Bolsonaro estava na Flórida, estado onde reside Trump, no momento do assalto aos poderes de Brasília. Trump encorajou publicamente a tomada do Capitólio em 2021 e convocou o ataque ao FBI em 2022. Depois disso, um tal de Schiffer atacou a sede do Federal Bureau of Investigation em Cincinnati.  alegou nas redes estar preparado para a guerra contra os comunistas que neutralizam quimicamente a puberdade das crianças e chamam isso de transição de gênero. Essa fala repetitiva não é acidental ou aleatória, já que a extrema-direita conseguiu direcionar sua raiva de forma ostensiva para o coletivo trans. Um de seus sucessos consiste em ter criado alguns neologismos para apontar o inimigo. Por exemplo, “groomer” (domesticador ou trapaceiro), cunhado pelo grupo de conspirações Qanon, é um termo que dobrou de uso nos últimos seis anos, segundo o Google Trends. “Groomer” é constantemente usado para apontar educadores, assistentes sociais e profissionais de saúde que apoiam grupos gays e transgêneros. Para os teóricos da conspiração de extrema-direita, eles adoram o diabo, praticam a pedofilia e o tráfico humano, manipulam menores e permitem que imigrantes ilegais povoem o país.

A National Socialist Rifle Association denuncia que desde 2016 a retórica antigay e antitrans aumentou de forma alarmante, coincidindo com a criação e expansão de Qanon. Eles coletam dados como o de que, em 2020, o FBI reconheceu um aumento anual de 946 crimes de ódio. Também em 2021, os crimes contra a comunidade gay cresceram 150% em relação ao ano anterior. Desde que Elon Mask comprou o Twitter, eles apontam que o discurso antigay aumentou 58%. A professora de Harvard Ana Carballo acompanha as iniciativas legislativas contra a comunidade LGTBIQA+. Só em 2022 foram mais de noventa. Em sua maioria, essas propostas estão focadas em cortar direitos médicos e acesso a competições esportivas. Em menor grau, também há propostas para proibir ou restringir eventos de drags em estados conservadores. É o caso do estado do Tennessee, que promulgou uma lei em março para proibir shows de drag queen com público ou onde possam ser vistos por menores. A regra foi suspensa por um tribunal federal em uma ação movida pela organização LGTBIQA+ Friends of George’s, que argumentou que a legislação é muito ampla e viola a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.

É cada vez mais comum que, quando qualquer evento drag é anunciado, ameaças transfóbicas apareçam em todas as redes sociais. Foi o que aconteceu durante o incidente em Roanoke (Texas) que viralizou as imagens dos milicianos LGTBIQA+ para o campo da comunicação em espanhol. Nesta pequena cidade, o dono de um bar organizou um evento familiar para a comunidade LGTBQIA+ da região no dia 26 de novembro. Ele perguntou às patrulhas policiais por dias se eles poderiam proteger a celebração. Não recebendo resposta, ele convidou o John Brown Gun Club para acompanhá-los. Em seguida, soldados paramilitares apareceram com seus escudos, armas e rostos cobertos da Socialist Rifle Association e conseguiram criar um cordão sanitário entre os manifestantes de extrema-direita, também armados, e a festa drag.

O jornal The Globe contou a história de alguns ativistas transgêneros que protegeram o pub Roanoke. De forma anônima, fizeram afirmações como: “Preferiria viver em um mundo sem armas, mas isso não vai acontecer”, “os apelos à violência parecem ser irremediavelmente mais frequentes e diretos, e sinto que é inevitável que em qualquer um desses eventos uma bala acabe em mim”, “Malcolm X disse ‘às vezes você tem que pegar a arma, às vezes você tem que abaixá-la'”, “desde 2020, praticamente toda semana recebo uma ameaça de morte”, “Tenho a sensação de estar em constante perigo”.

Não passou despercebido a ninguém que os crimes de ódio contra a comunidade LGTBIQA+ podem estar aumentando não apenas nos Estados Unidos. Na Espanha, a violência política contra o Ministério da Igualdade se intensifica exponencialmente. Observamos como o Vox replica dinâmicas violentas da extrema-direita internacional. Recentemente, uma congressista fez um discurso no Congresso que parecia ter sido traduzido de um evangelista do Missouri. Nem é preciso dizer que nossa cultura armada responde a uma tradição muito diferente da dos Estados Unidos. No entanto, sabemos que, em 2017, três milhões de espanhóis tinham licença de armas. O perfil de seus portadores não é tão diferente do dos seguidores de Donald J. Trump: homens cis, brancos, heterossexuais, caçadores.

Reportagem de D. Egia publicada em Pikara online magazine em 10 de maio de 2023. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/05/la-herencia-de-black-panthers-milicias-lgtbiqa-en-eeuu/

Tradução: Luiz Morando.

Os tiroteios estadunidenses costumam ser perpetrados por homens heterossexuais, cis e brancos. Embora sejam descritos como “solitários”, em muitos casos são organizados. Em resposta, grupos queer, antifascistas e LGTBIQA+ promovem a luta armada como defesa.

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