Coco Guzmán: o desenho como transformação e intervenção

Coco Guzmán / Coco Riot é um artista cuir não-binário que investiga histórias limiares latentes que emergem do contexto de violência política, como explica em sua página (https://www.cocoriot.com/). Ele diz que sempre desenhou, pois isso lhe causa muita calma e tranquilidade. “Adorava colocar todos os lápis no chão, não sei desenhar sobre a mesa, e ouvir música. Lembro-me de desenhar como algo muito infantil que sempre fiz. Desenhava tirinhas e tinha muitos quadrinhos”, conta.

Nesta entrevista, Guzmán fala sobre o desenho como prática corporal, sobre quadrinhos e tirinhas, sobre fanzines, sobre “iminência” como ameaça de cuirização do mundo e sobre intervenção no espaço público.

Como quadrinhos e tirinhas marcam sua vida?

Para mim, foram essenciais. Estudei Literatura mas toda a minha atividade tem sido orientada para a história em quadrinhos, toda a minha base artística se baseia em como contar uma história em duas dimensões, utilizando o tempo e o espaço. O quadrinho conta uma história através do uso de uma equação entre espaço e tempo, ou seja, espaço é igual a tempo e então cria toda essa dinâmica de como os personagens entram ou saem, o que acontece no meio. Sempre gostei muito disso, o que acontece onde você não consegue ver o desenho. Ser capaz de entrar e sair de corpos, porque não é apenas plano, você pode entrar na cabeça de alguém e depois sair. Você também pode entrar e sair do puramente visual, a literatura também faz isso, mas o fato de ser visual te obriga como leitor a trabalhar e isso me fascina. Tenho a imagem de estar na cama com um café ou chocolate e uma história em quadrinhos, para mim isso é felicidade.

Você sempre soube que queria desenhar ou tem tido momentos de pausa para fazer outras coisas?

Tive um momento de pausa. Lembro que na minha família me diziam muito que eu ia estudar arquitetura porque desenhava muito bem, o que é típico. Porque, claro, Arquitetura é desenho, mas “desenho que serve para alguma coisa”. Quando comecei a Literatura, deixei um pouco de lado o desenho, embora visto daqui, estudar literatura medieval era um dado adquirido porque o que realmente me chamou a atenção foi como a imagem e o texto se misturam no livro como objeto. Mais do que as histórias em si, é como a imagem serve para contar uma história. Depois, voltei a desenhar porque ainda gostava muito de quadrinhos e comecei a descobrir quadrinhos mais cuir, lésbicos, e não tinha dinheiro para comprá-los. Eu morava na França naquela época, numa ocupação e não tinha dinheiro e disse para mim mesma: ah, se minha avó dizia que eu desenhava muito bem, e se eu fizer meus quadrinhos? Foi assim que retomei o prazer de desenhar, de contar histórias e foi assim que fiz meu primeiro fanzine. Esse foi o meu retorno ao desenho. Descobrir os fanzines os transformou em referentes e prática política.

Os fanzines sempre foram o meio preferido das dissidências, certo?

Claro, porque você pode contar a história que você quer contar. Para mim é a vanguarda, ou seja, é realmente o primeiro traço escrito do que está acontecendo. Acho que a ação vem primeiro e depois vem o fanzine, que é a primeira história, porque você não precisa passar pelas editoras e tudo que envolve o mundo editorial “institucional”. Você faz você mesmo e essa estética e essa prática de fazer você mesmo me parece fundamental, te dá uma agência que te permite expressar as coisas como você quer. Ao mesmo tempo, sempre levei em conta a capacidade de distribuição e dispersão, ou seja, de chegar a mais pessoas. Que você nem saiba para onde vai me parece muito político, pensar que foi feito para ser distribuído de uma forma muito acessível. Há muitas razões pelas quais o fanzine é o meio preferido de todas as dissidências. A facilidade de impressão, o imediatismo, pode ser escrito em várias vozes, não tem nenhum padrão estilístico ou gramatical a seguir, é aberto e essa capacidade de ser aberto me parece muito revolucionária.

Há uma estética muito reconhecível nos fanzines, não é? Você acha que a estética é uma ética?

A estética é sempre ética. Mas nos fanzines acontece muita coisa como nas graphic novels, principalmente nos últimos anos, como também o fanzine “legal”. Quer dizer, o fenômeno hipster é muito importante no mundo dos quadrinhos e do fanzine e você encontra fanzines que custam 20 euros. Para mim, isso é indecente. Não faz sentido, rompe completamente com a questão ética do fanzine, que é o acesso à distribuição. Então, voltando à questão, para mim a estética é sempre uma decisão política, porque mesmo que pensemos que a estética é uma questão de gosto, o gosto é construído politicamente. Eu penso, por exemplo, no que eles ensinam na escola de arte, o que você aprecia: equilíbrio, composição, equilíbrio de cores, isso é uma política, é uma política extremamente burguesa. No meu trabalho, o que eu conto é importante, mas como eu conto, quais são os materiais, como eu fiz, o método de produção, tem o político, porque depende o tempo todo de qual é a intenção e a relação que você deseja criar com a pessoa que está olhando para ele. Tudo isso são escolhas éticas, depois políticas.

Agora que o tema da graphic novel surgiu e parece estar muito na moda, você vê alguma diferença entre quadrinhos e graphic novels?

Não sei bem, acho que o quadrinho é mais curto. As definições são um pouco difíceis para mim, mas acho que a graphic novel contém uma única história como os romances, não é uma série como nos quadrinhos. Há toda a história que você quer contar em um livro. Sinceramente, acho que há uma questão muito de classe, muito “moderna”. Podemos dizer que os quadrinhos são os “piores” dentro da escala de valores (risos), a graphic novel já é considerada arte, enquanto a tirinha e depois os quadrinhos nunca foram considerados arte. Isso é uma das coisas que eu gosto muito nos quadrinhos e nas tirinhas, que eles nunca cheguem a esse status, que nem sejam literatura. Não é literatura, não é arte, é o que as pessoas podem ler quando não sabem ler. É o que se dá às crianças, o que se lê no jornal aos domingos. O que as pessoas que não sabem ler livros de verdade leem. Eu acho que a graphic novel é uma história em quadrinhos de alta classe e é vendida dessa forma, há um qualificativo de valor agregado que é dado a ela. Eu faço quadrinhos.

Deixando um pouco os quadrinhos de lado, você tem um personagem cuir maravilhoso que, por sua vez, é um projeto de intervenção espacial. Quando nasceu a Sereia Bigotuda e por quê?

É um personagem que sou eu. Sou uma pessoa não-binária que teve a experiência de ser uma pessoa que o mundo lê a partir do “não sei o que você é”, com a violência que isso acarreta, como ser espancado ou expulso do banheiro. Um dia, farto dessa violência, disse a mim mesmo: “Vou fazer meu próprio letreiro de banheiro!” Como adoro o mar e adoro a fantasia como entrada para a realidade, ou seja, para mim as sereias não são personagens fantásticas e, além disso, tenho bigode, disse para mim mesmo: “sou uma sereia com bigode”. Daí surgiram mais placas de banheiro até chegar a 80, que virou uma coleção e muita coisa que saiu desse projeto. A ideia sempre foi questionar a normalidade e questioná-la através do humor, da política e de imagens muito acessíveis. A simbologia da sereia de bigode é uma imagem que abre muitas conversas, e a ideia é poder compartilhá-la.

Qual a importância então da intervenção no espaço público para a comunidade cuir?

Não me lembro agora quem disse isso [Christopher Reed, Imminent Domain: Queer Space in the Built Environment], mas a ideia de que todo o espaço é iminentemente cuir me excita muito. Que todo espaço, seja ele qual for, é capaz de se tornar cuir. Somente pela presença de um corpo cuir o espaço já pode ser transformado, ou porque há um pequeno sinal ao redor. Por exemplo, lembro que em um lugar vi algo no plugue que dizia queer power, que até muda a ideia de plugue. São essas pequenas coisas. A ideia de iminência como ameaça, como algo que pode acontecer a qualquer momento, me fascina. Essas intervenções já são um arquivo, aliás, porque no momento em que você entra em um banheiro e vê um adesivo, ou quando ando pelas ruas de Vallecas e leio “bairro transinclusivo” na parede, não sei quem escreveu, mas sei que passou um corpo em que me reconheço, embora não saiba quem é; e isso é uma memória, uma memória que não está sistematizada, mas que é e me parece muito importante.

Nesse caminho de produção, de onde você produz?

Do meu jeito de ser e ver o mundo: da minha emoção, da minha experiência, de maneira autobiográfica. Gosto de ter uma relação horizontal e não pedagógica com as pessoas, não parto do “isso é um trabalho cuir”, começo pelo que sinto e a partir daí conto uma história. Precariedade, tempo, ansiedade. Tudo vem daí. A escolha de materiais, por exemplo; não tenho dinheiro, nem venho de uma família do mundo da arte, e não acho que para a arte chegar às pessoas tenha que ser cara, então o método de produção e os materiais são muito importantes. Materiais que eu sei que alguém já experimentou: papel e lápis.

Você normalmente trabalha com preto e branco. Por quê?

Porque é muito mais fácil (risos). Também venho do mundo dos fanzines e gosto muito de brincar com isso, preto e branco, cinzas, contrastes, tramas. Não penso que haja pintura. Para mim, com os poucos materiais que utilizo, já existe uma enorme quantidade de exploração artística que posso fazer. Não gosto de trabalhar com materiais caros. Sempre trabalhei com pessoas que sabiam que eu ia fazer um pouco do que eu queria. Tive a sorte de ter experiências muito boas, por exemplo, na Bienal de Arte de Havana, com um curador que me acompanhava muito generosamente e me deixava fazer o que eu queria. O modo de produção e com quem trabalho é muito importante.

Sobre o cartaz da 2ª Conferência Sindical Feminista, como e de onde surgiu o evento?

Isso me pegou em um momento em que estou sendo muito exigente sobre o que escolho e estou apenas fazendo coisas agora que realmente me inspiram por razões de tempo e saúde mental também. Tive muito pouco tempo para fazê-lo e abordei-o como um jogo, não procurando tanto um produto, mas sim um prazer, e acho que fazer assim consegue transmitir esse prazer. Fiz com uma técnica muito parecida com a gravura, na qual eu tiro, não acrescento, e isso me permite ter menos controle. E para mim foi muito importante que fosse um desenho que não saísse apenas da cabeça, mas que tivesse muita energia. Eu queria corpos que representassem um movimento, uma energia, uma unidade, que se fundisse, que houvesse diversidade; diversidade de corpos e possibilidades de corpos. Eu não queria uma lista de compras em que parecesse que estamos riscando representações e em que obviamente sempre vamos deixar as pessoas de fora; interessava-me não cair na descrição de identidades, mas na expansão e nas possibilidades dos corpos. Com a natureza e com a tecnologia, e como os dois podem ser ligados. Essa era a ideia, que os corpos eram algo muito orgânico. Corpos com três cabeças, quatro cabeças porque esses são os corpos sociais, os grupos de amigos. Três cabeças com duas pernas, punhos gigantes porque é aí que estamos colocando a força, e que todos esses elementos estavam muito entrelaçados. Para mim aquele cartaz é um jogo de corpos e possibilidades. Como o próprio ato de desenhar, uma prática repleta de possibilidades.

Tatiana Romero entrevista Coco Guzmán. Publicado em Pikara online magazine em 30 de março de 2022. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2022/03/coco-guzman-el-dibujo-como-transformacion-e-intervencion/

Tradução: Luiz Morando.

Entrevista com Coco Guzmán, artista cuir, sobre prática corporal, tirinhas, histórias em quadrinhos, fanzines e intervenção no espaço público.
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