A falácia do debate social sobre a exploração reprodutiva

A capa da ¡Hola! com a qual acordamos na última quarta-feira voltou a colocar a exploração reprodutiva na mídia e no foco político. Mas, quais podem ser as reais consequências da decisão individual de uma pessoa muito famosa para os direitos de mulheres e crianças para além de horas e horas de reuniões onde a tendência a opinar sobre qualquer assunto e o desconhecimento sobre o feminismo do patriarcado? Até dias atrás era um tema em torno do qual parecia não haver divisão na sociedade espanhola. Apenas um partido político fadado ao desaparecimento (Ciudadanos) apostou na sua legalização, e a reforma da lei do aborto há apenas algumas semanas estabeleceu que era considerado um tipo de violência contra a mulher no ordenamento jurídico espanhol.

Em vez disso, bastou uma capa para que a grande mídia, inclusive o público, dedicasse horas e horas a isso até sedimentar uma mensagem sutil através da repetição constante: o debate foi reaberto. É uma premissa falsa, esse debate não foi reaberto. Principalmente porque levará um tempo razoável para avaliar as consequências para a opinião pública, mas mais uma vez fica evidente como a mídia tenta, a conta-gotas, fazer a mensagem afundar sem prever que em algum momento o copo transbordará. Aliás, a opinião majoritária nas redes sociais foi a rejeição de uma imagem que mostra claramente demasiados aspectos negativos das nossas sociedades atuais.

Há muito tempo que falamos de feminismos, e não de feminismo, porque negar a sua existência, a riqueza coletiva que gera e as lições inerentes à visibilidade dos problemas das mulheres em toda a sua diversidade seria omitir a realidade. Assumir, portanto, as diferenças e a necessidade de chegar a acordos por meio do debate de posições divergentes é essencial para a ação política. Tudo o que foi dito acima é positivo, eu diria até um progresso. Mas por que a mídia alude repetidamente à ideia de “é um debate” para gerar confusão sobre questões que têm a ver diretamente com o feminismo? Por que inclusive Feijoó[i] fala na necessidade de haver um debate dentro do Partido Popular quando a direita sempre foi contra? A direita antifeminista neste país se preocupa com lógicas horizontais onde os debates são essenciais? A verdade é que não.

Receio que essa linguagem responda ao questionamento da voz do movimento feminista organizado na tentativa de prejudicar a incidência política que vem demonstrando nas ruas há cinco anos. É uma estratégia usada há anos na prostituição, um verdadeiro debate, neste caso sim, dentro do feminismo, sendo usado infinitamente como desculpa para não fazer nada. Quando uma questão política é colocada como debate, nem sequer como duas posições opostas, dá-se a sensação de indefinição e, portanto, de inoperância política. No caso da barriga de aluguel, o feminismo favorável é minoritário, como mostram as poucas vozes ouvidas nos últimos dias, apesar de a mídia, dando a um caso particular um impacto desproporcional, ter influenciado até mesmo a reconsideração de um partido político que é o principal ator político da direita institucional.

Toda essa mudança gradual de posição e o tratamento da mídia nada mais é do que uma tentativa de posicionar a barriga de aluguel altruísta como a opção de consenso. Um consenso onde os privilegiados que podem ter acesso à exploração reprodutiva têm tudo a ganhar, e as mulheres, todas elas, mas especialmente as racializadas do Sul global e as mais vulneráveis ​​socioeconomicamente têm tudo a perder, também em nosso país. Não esqueçamos que a exploração reprodutiva altruísta abre as portas para um mercado de baixo custo que barateia um processo especialmente prejudicial à saúde das mulheres. O uso da palavra “altruísmo” reflete até que ponto se espera que as mulheres façam tudo por amor, mesmo que isso tenha sérias repercussões negativas para elas. A posição de líderes políticos progressistas como Íñigo Errejón[ii], abrindo as portas à modalidade altruísta, deve alertar-nos que, mais do que um debate, esta abordagem da questão é uma encruzilhada de difícil saída.

O nível de detalhamento com que uma disputa política pode ser descrita, seja em um partido, em um movimento social ou em um conflito bélico, é milimétrico, a ponto de a mídia usar simplificações para torná-la compreensível, mesmo correndo o risco de perder não apenas nuances, mas também informações valiosas ao longo do caminho. Por outro lado, no caso da exploração reprodutiva, estamos assistindo à proliferação de matizes até à exaustão; se um amigo te perguntar, se uma irmã com câncer te perguntar, se tua mãe te perguntar, se teu amigo gay te perguntar (o pinkwashing está na ordem do dia quando se trata de nos vender como uma prática emancipatória nada inovadora); você é altruísta apenas pagando despesas, você é altruísta porque a grávida quer etc. A cada irrupção de um novo dilema, parece que há um departamento de marketing pensando em como convencer a sociedade espanhola. A proibição da publicidade da exploração reprodutiva deve ter liberado seu orçamento, fazendo com que suas estratégias de mercado mudassem.

O debate social, se existir, será um debate falho pelos interesses econômicos daqueles que lucram com uma prática que é a violência contra as mulheres, mesmo que tenham voz nas famílias de classe alta que concordaram com essa prática na tentativa comercial de gerar empatia. Para quem tenta nos fazer acreditar, depois de uma sisuda sessão de marketing com muito brainstorming por trás disso, que o debate foi originado pelo próprio movimento feminista, só temos que dizer a eles que o copo definitivamente transbordou para torná-lo medianamente crível desta vez.

A campanha a que estamos assistindo nada mais é do que um dos tentáculos da reação patriarcal. Uma aposta política que não tem dúvidas em agir quando sua esfera de atuação é cortada, como aconteceu com a reforma da lei do aborto semanas atrás. Para reverter isso, não é possível entrar em um período de reflexão, especular sobre dissertações situacionais que buscam esconder o estrutural para sublinhar o egoísmo emocional, nem ficar politicamente estagnado. É necessária uma resposta política sem alarde que bloqueie de vez o uso desta prática não só neste país, mas também por espanhóis no exterior. O governo de coligação, com o Ministério da Igualdade ao leme, chegou a tempo de aprovar a moratória de um ano para quem já iniciou este processo com o objetivo de regular a não aplicação da instrução que permite a política do fato consumado. O mesmo está incluído no documento do Podemos desenvolvendo sua posição como partido sobre a exploração reprodutiva. Só assim poderemos evitar o gotejamento de casos com a sua irremediável normalização social através dos tabloides e apostar num feminismo que, nos limites das políticas de Estado, defenda uma política feminista internacionalista que não olhe para o lado quando se trata da exploração de mulheres racializadas e despossuídas para quem mercantilizar com sua capacidade reprodutiva é a melhor opção que o patriarcado neoliberal lhes serve de bandeja, principalmente quando habitam o sul global.

Artigo de Inés Morales Perrín publicada em Pikara online magazine em 5 de abril de 2923 Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/04/la-falacia-del-debate-social-sobre-la-explotacion-reproductiva/

Tradução: Luiz Morando.


[i] Alberto Núñez Feijoó, senador espanhol pelo Partido Popular (direita) da Galiza.

[ii] Íñigo Errejón Galván (Madrid, 1983) é um politólogo e político espanhol. Possui doutorado e é pesquisador em Ciência Política na Universidade Complutense de Madrid, vogal da Fundação CEPS (Centro de Estudos Políticos e Sociais) e membro do conselho editorial da revista de análise política Viento Sur. Em 2014 foi diretor da campanha do partido político Podemos nas eleições ao Parlamento Europeu de 2014. (Wikipedia)

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