Os livros e a escrita abriram portas e fecharam misérias para a argentina Camila Sosa (1982, La Falda, Córdoba), mas ela saiu da prostituição agarrando-se aos palcos com unhas e dentes. Atualmente, ela segue como atriz e recita versos de Federico García Lorca como se fossem orações. Sua primeira peça traçou símiles entre ser travesti e as misérias e dores de cabeça das fictícias mulheres do poeta de Granada. A crítica ficou assombrada.
Na aurora da vida de Sosa houve mais espinhos do que rosas: “Quando me apaixono pelos meus colegas de escola, rezo para que me vejam como uma menina. Quando começo a florescer, rezo para que meus seios cresçam da noite para o dia, para que meus pais me perdoem, para que nasça uma vagina entre minhas pernas. Mas não. Tenho uma faca entre as pernas.” Ler seu primeiro livro, Las malas (Tusquets, 2020), é um presente, é rir e chorar, é realismo mágico transbordante, uma caneta afiada e precisa ao contar a história de um grupo de travestis tão corajosas quanto alquebradas. “As travestis sobem todas as noites desse inferno sobre o qual ninguém escreve, para devolver a primavera ao mundo.” Las malas teve tanto boca a boca e aceitação que se tornou essencial.
Seu novo livro, de contos, intitula-se Sou uma tola por te querer (Tusquets, 2022) e com ele confirma que a literatura é o seu refúgio e que nela todos podemos refugiar-nos. A primeira história, “Obrigada, Defunta Correa”, é a única que se inspira na vida real de Sosa para funcionar como prólogo e fio condutor com Las malas. La Grace e Don Sosa, ou seja, seus pais, iniciam uma peregrinação ao templo da Defunta Correa para pedir que sua filha deixe a prostituição. Meses depois, estreia a peça que estabelece símiles entre a vida de Camila Sosa e as mulheres da ficção de Lorca. O sucesso dispara e ela consegue se dedicar às mesas e ao exercício da escrita. Sou uma tola por te querer é um conjunto de histórias fictícias (exceto a primeira) em que os protagonistas habitam a violência, a dor, o que alguns consideram as margens mas ela afirma ser o centro.
Por que você se refere como travesti e não como mulher trans?
Quando comecei a me travestir não existia o termo mulher trans, de qualquer forma existia a palavra transexual, que veio da academia queer da América do Norte e Europa. Eles deixaram claro que você tinha que passar por uma redesignação genital para ser transexual. Por outro lado, tem o perfil do insulto, que eu acho maravilhoso. Eles nos insultaram chamando-nos todas de travestis. As que têm peito de silicone, as que têm peito de espuma, as que têm pau, as que se vestem só de noite ou as que se vestem de dia e de noite. Nós éramos todas travestis. Essa palavra funcionou como um insulto e como um chamado. Aí eu comecei a ler alguns teóricos que diziam: transgênero é tal coisa, mulher trans é tal coisa, travesti é tal coisa, e eles fizeram um tipo de pesquisa em torno dos órgãos genitais e da cirurgia. Eu coloquei meus seios apenas há dois anos, mas eu ia para a cama travesti e me levantava travesti. Mulher trans, essas duas palavras, me parecem higienizantes, uma tentativa de apagar o passado, como tomar emprestado o termo mulher. Não me interessa essa nomenclatura, muito menos tentar ler um ao outro como se fôssemos um dicionário. A identidade das pessoas é um mistério para todos, não apenas para as travestis. Acho uma aberração que as pessoas lavem suas vidas: como aquelas que foram prostitutas e agora são mulheres da sociedade e nunca mais falam sobre seu passado. Ou as travestis que dizem “nunca me discriminaram”. Como você pode lavar a vida a tal ponto? Onde está sua experiência, as manchas e cicatrizes do seu passado?
Quando você diz “eu comecei a me travestir”, o que você quer dizer?
Quando me vesti fisicamente de mulher e saí para a rua. Eu tinha 13 anos. Eu escapava pela janela e caminhava sozinha à noite. Eu fazia roupas com lençóis e cortinas para mim. O travestismo tem tudo a ver com a astúcia. Ser mulher ou ser homem era algo que te davam; seus pais, a escola, a igreja e seus amigos ensinam a você. Mas ninguém te ensina a ser travesti, foi uma coisa que você aprendeu intuitivamente. Lembro-me dos primeiros seios que ganhei. Não sei como me ocorreu cortar um pedaço do colchão em forma de seio e pintar nele o mamilo. Eu tinha 14 anos e ninguém o tinha visto, mas queria ir ao boliche de travesti. A sensação era de poder. De muitíssimo poder. Agora não tenho nenhum sentimento semelhante. Eu ia para a escola de madrugada, andando, tinha roubado rímel de uma perfumaria, e um quarteirão antes de entrar na escola eu colocava bem sutil e aquela sensação era como levitar, como estar vinte centímetros acima do chão. Era como um crime, uma traição… numa cidade onde no final acabaram me perseguindo a pedradas por quem eu era.
E seu pai e sua mãe?
Eles descobriram por um amigo do meu pai. Tive a sensação de que eles me odiavam. A cultura ocidental ensina a odiar travestis. Fui insultada por meninas que vão para a escola primária. Nunca fui capaz de pedir ajuda aos meus pais. Depois de muitos anos, eu disse a mim mesma: “Eles eram camponeses, não tinham outra saída, o que poderiam fazer?” O mundo e a sociedade, tudo foi arranjado para eles terem esse terror. Eles iam para a cama à noite e eu os ouvia falar: “O que vamos fazer?” Meu pai disse: “Vou mandá-lo para uma escola militar.” Mas como eles poderiam reagir? Na TV, fomos ridicularizadas, na mídia nos ridicularizaram. Para eles, era o pior que lhes poderia acontecer.
Você diz a literatura salvou sua vida porque foi um espaço que lhe foi permitido, que quando a viram submersa em um livro a deixavam tranquila.
Sim, foi uma extorsão. Eles respeitavam que eu lesse e fosse educada. Foi importante para eles porque meus avós eram analfabetos e minhas tias nem terminaram o ensino médio. Além disso, eu era uma boa aluna. Eu sempre tirava 10, e os professores me elogiavam. Na verdade, fui porta-estandarte [o aluno ou aluna com melhor média é o que carrega a bandeira argentina nos eventos da escola]. Eles sentiam orgulho e diziam: “Meu filho escreve”, e me deixavam em paz.
Você foi para Córdoba para estudar biologia…
Sim, mas quando cheguei para me inscrever percebi que tinha lido mal a data e já estava encerrado. Acabei me inscrevendo em Comunicação Social. Era o que meu meio-irmão mais velho estudava e, como eu estava interessada em escrever, pensei que poderia fazer algo com isso. Tive também que sair da cidade, se eu ficasse eles acabariam me matando.
Você voltou para La Falda?
Sempre, meus pais moram lá. Há um poema de Sharon Olds que diz algo como: “O dano que meu pai me causou está diminuindo.” Agora, quando vou ao povoado, não há ninguém. As pessoas que me perseguiram e me fecharam a porta não existem mais. E eu vou passear com a minha mãe, no rio, tomar chimarrão… à noite, a gente sai para jantar num restaurante. Por muito tempo, quando fui, me conectei com o medo que experimentei ali. Mas nos últimos anos isso deixou de importar. O dano que eles me causaram está diminuindo.
Enquanto estudava Comunicação Social, você conheceu aquele que até hoje é seu melhor amigo.
A vida toda com ele. Ele era bicha e, como dizem, as penas voavam. Nos vimos e nos apaixonamos. Há treze ou quatorze anos ele fez uma viagem pela América Latina e eu passei dois meses deitada em um leito de tristeza porque ele partiu. Um amor enorme. Fizemos uma oficina de teatro na universidade, e no terceiro ano ele me disse que ia estudar teatro. E eu disse a ele, “bem, vamos lá”. Quando entrei na Faculdade de Teatro, um professor veio até mim e disse: “Qual é o seu nome?” Eles haviam colocado na lista Cristian Omar Sosa Villada e eu disse discretamente: “Sou eu”. Ele me perguntou: “Mas, qual é o seu nome?” Eu disse a ele Camila. Ele riscou o nome e colocou Camila. Eu senti como se estivesse em casa. Quase todos os meus amigos são dessa época. Mas não terminei Comunicação Social nem Teatro. Exerço ilegalmente a teatralidade e a comunicação [ri]. Vou ser presa. Espero que seja uma prisão masculina para eu ser a rainha [risos].
É incrível como você é culta e engraçada. Digo incrível pelo poder com que combina ambos.
Dei uma oficina de dois anos em uma prisão feminina. Antes, as travestis iam para o presídio masculino, mas com a Lei de Identidade de Gênero de 2012 elas foram transferidas para o presídio feminino. Eu ia lá e as colocava para ler. No começo, eu vinha com livros com muitas conotações sociais. Com textos do poeta Camilo Blajaquis, um pive que foi preso por roubo e começou a escrever em uma oficina de presídio. Ou “Réquiem para una reclusa”, de Faulkner. E elas me disseram: “Mas nós vivemos isso todos os dias.” A mesma coisa acontece quando travestis recebem meus romances para ler [risos]. Eles ficam imediatamente engajadas na leitura. Quero contar isso porque perguntava às travestis se gostavam mais de estar na prisão feminina ou na prisão masculina. E elas me diziam: “A dos homens, porque as mulheres gostam muito de putaria e fofocas; e lá eles fodiam todas as noites”. Maravilhosas.
Como você sobrevivia em Córdoba enquanto estudava?
Me prostituindo. Fiz de 2000 a 2009. Nove anos. Sobrevive-se com vivacidade travesti e com drogas e álcool. Tínhamos que estar anestesiadas. Para além dos crimes, uma coisa curiosa acontece com as travestis: os homens têm uma espécie de medo. Tínhamos plantado a ideia de que éramos realmente muito perigosas. Muito desejáveis porque tudo era proibido. Nós, travestis, nos enchemos da matéria escura do desejo: a oleosa, aquela que gruda e fica pegajosa. E é isso que eles desejam.
Como era a cooperação e a ajuda entre travestis prostitutas?
Carregávamos navalhas, algumas roubadas de homens. Já vi travestis deixarem homens convulsionando na rua a golpes de saltos de sandálias. Não era algo contínuo, nem existia por si só, existia enquanto houvesse um inimigo. Às vezes, as inimigas éramos nós mesmas, entre nós. Mas se a polícia ou algum cliente babaca aparecesse, nós todas cerraríamos fileiras. O que se fala agora tão levianamente sobre sororidade era o que fazíamos todos os dias. Às vezes o dia corria muito bem para uma e ela dizia: “Venha comer em casa”.
Você diz que a prostituição chegou por causa da pobreza e que sendo pobre é muito difícil sair de lá. Você tem sido a exceção que confirma a regra.
Me empurraram para ser pobre, e eu não tive chance de fazer mais nada. Esforcei-me: limpei casas, costurei roupas, fiz consertos, vendi coisas na rua. O capitalismo é um sistema prostituinte. Não sei que diferença há entre ser prostituta e ter que passar catorze horas filmando o capítulo de uma minissérie. Você também coloca o corpo, eles também te manipulam, não tem descanso. Todos nós estamos colocando o corpo de alguma forma. A questão da prostituição é o corpo, e ainda existe muito tabu. Como diz Marguerite Duras, há casamentos em que a mulher é uma prostituta privada. O que não pode acontecer em hipótese alguma é que o corpo de uma mulher ou corpo de uma travesti seja administrado por traficante.
Você sente falta de alguma coisa dessa época?
Sim, tudo. Agora estou sempre cansada e naquela época não estava. Também mantenho alguns bons amigos. Mas, acima de tudo, sinto falta da selvageria, da juventude e de viver à noite.
Entrevista com Camila Sosa Villada concedida a Rocío Niebla e publicada em Pikara online magazine em 5 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2022/10/el-capitalismo-es-un-sistema-prostituyente/
Tradução: Luiz Morando.
