Drag King Dreams, o apoio mútuo como base da resistência

Uma casa dividida não pode manter-se em pé.

(Leslie Feinberg)

Na comunidade migrante, no ativismo antirracista, algo sempre nos acompanha: a emergência. Agimos e reagimos em caso de emergência, gerimos a emergência, apagamos incêndios, respondemos o mais rapidamente possível a situações vitais insustentáveis; despejos, deportações, internações em CIEs, prisões arbitrárias, precariedade e pobreza em todos os âmbitos da vida. Habitar o antirracismo é como uma máquina que nunca para, assim que resolvemos uma situação crítica, chega outra e muitas vezes nos encontramos com pouco tempo para pensar, para articular nossos sentimentos. O ativismo é 24 horas por dia, 7 dias por semana, mas a solidariedade e o apoio mútuo também. Antirracistas, dissidentes de gênero, transfeministas, sabemos que são nossas redes afetivas e ativistas que nos sustentam e nos permitem viver em situação de emergência. Nossa luta é para sair dessa emergência, embora tenhamos aprendido a sobreviver nela, a passar pelas frestas do capitalismo neocolonial e a hackear o sistema.

O segundo romance de Leslie Feinberg, publicado em inglês em 2006, retrata a emergência a que me refiro. Escrito e ambientado na Nova York pós-11 de setembro, fala sobre precariedade, securitismo, racismo, desaparecimentos, uma sociedade quebrada e desestruturada, onde o ódio reina e o medo corre solto. Mas também fala de resistência, redes de cuidado, apoio mútuo, luta de classes e como não poderia deixar de ser, é uma história de amor: a das alianças impossíveis.

– Você tem medo?

– Isso não me assusta. O que me assusta é que são mais e são muitos – diz Max a Vickie, enquanto o chauvinista transfóbico de plantão grita com eles por trás das janelas do trem. Max sabe que aqueles gritos estão carregados de ódio. Vickie tem medo, Max tem certeza de que não importa quem, sempre haverá alguém esperando para atacá-lo, gritar com ele, espancá-lo ou matá-lo. Nas primeiras cinco páginas do livro, já aparece o rasgo, acontecimento que marca todo o texto: o desaparecimento de Vickie, travesti, advogada, ativista, judia e militante comunista, uma das personagens que, embora ausente, configura o universo em que vive e resiste Max.

Drag King Dreams é um romance estrelado por uma pessoa transmasculina: Max, “sapatão de terno e gravata; mulher-macho brutal, drag king das antigas” em suas próprias palavras. Não sabemos muito sobre ele, não sabemos quantos anos ele tem, embora possamos intuir pelas memórias de lutas passadas que ele compartilha com Ruby, uma mulher trans com Aids, isso é importante para a trama, porque embora seja verdade que a pior crise de Aids já havia passado pelos anos 2000, num país onde ninguém ou quase ninguém tem plano de saúde, é a rede afetiva de Max, da qual Ruby é um nó, aquela que sustenta financeiramente seu tratamento médico, “Estou sentado aqui contemplando a porra de uma guerra [a do Iraque]. Eles conseguiram todo esse dinheiro para comprar bombas e apreender o petróleo, enquanto meus amigos tiveram que fazer uma arrecadação para comprar remédios para mim”, conta. Apoio mútuo como contrapartida à necropolítica.

Max é, como a própria Feinberg, um judeu secular. Ele cresceu nas cooperativas habitacionais construídas na década de 1920 pela United Workers Association (parte dos Industrial Workers of the World) para militantes comunistas no Bronx, com a intenção de oferecer moradia digna à população judaica que vivia no Lower East Side, o bairro onde Hesh, amigo de infância de Max, cresce. É Hesh, um geek solitário, quem abre o mundo da internet para nosso protagonista e a incursão de Max no ciberespaço nos remete aos primeiros anos do ciberfeminismo, do VNS Matrix, da rede como um leque cheio de possibilidades, como lembra Remedios Zafra no prólogo de Ciberfeminismo (Holobionte, 2019), “intuímos fortemente que na tela poderíamos tentar despir nossos figurinos herdados, criar outros, abordar o que não se compreende sobre identidades e está escondido ou domesticado, libertar-nos de espartilhos, espalhe suas asas”, é o lugar que Max tem procurado, embora mesmo lá não consiga escapar da violência que o binarismo de gênero implica.

Sabemos também que sua mãe morreu quando ele era pequeno, e que a voz de sua tia Raisa, a ruiva, ecoa em sua cabeça quando ele tem medo: “O mundo é de todos vocês, vocês que apoiam o mundo todos os dias com o seu trabalho.” Drag King Dreams é atravessado por classe, precariedade e militância comunista, isso não é trivial já que a própria Feinberg fez questão de se apresentar como comunista, sindicalista, antirracista e ativista trans. É um romance escrito a partir daí e que sem dúvida, além de retratar a emergência, homenageia o ativismo. Não se perde a oportunidade de mostrar como em muitos momentos da história da “luta”, as reivindicações LGBTQI+ e os sindicatos de classe estiveram juntos na barricada, porque no fundo somos todos classe trabalhadora.

A classe trabalhadora é também a população migrante, aquela que, como Max, é turista até no próprio bairro. Pessoas que vivem desenraizadas, que não pertencem a lugar nenhum, que estão constantemente alienadas, desconfiadas e que nesses anos pós-11 de setembro sofreram desaparecimentos forçados, prisões, deportações flagrantes, racismo e xenofobia. Essa é uma das alianças mais inusitadas do livro, aquela que é tecida entre Max e seus vizinhos muçulmanos: Hatem e Mohamed. Uma relação que Feinberg apresenta como de igual para igual, em que se ajudam e não é o branco que de alguma forma “salva” o racializado do infortúnio.

Eu poderia continuar falando sobre o romance e não terminaria de desvendar todos os fios da complexa meada que é Drag King Dreams. Leslie Feinberg, aquela das alianças impossíveis, completa com este texto a epopeia queer iniciada com Stone Butch Blues e reafirma a necessidade de construir um coletivo para o qual o apoio mútuo e a solidariedade sejam a base da resistência.

Não quero perder a oportunidade de agradecer às tradutoras e à editora, pelo fato de todo o texto ser escrito usando majoritariamente o gênero neutro. Observe também que o preço do livro cobre apenas os custos de produção, como era a vontade de Leslie e que qualquer lucro é destinado ao coletivo LGBTQI+ ou a iniciativas antirracistas.

Resenha de Tatiana Romero publicada em Pikara online magazine em 22 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/02/drag-king-dreams-el-apoyo-mutuo-como-base-de-la-resistencia/

Tradução: Luiz Morando

Os romances de Leslie Feinberg, ambos traduzidos e publicados ao espanhol pela Levantafuego, são um exemplo claro do que María Galindo chama de alianças impossíveis: uma relação cúmplice que responde da desobediência à fragmentação patriarcal.

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