O vermelho é a única cor que os espíritos podem perceber, segundo uma crença compartilhada por muitos dos povos originários da América do Norte. Por isso, os vestidos vermelhos foram convertidos em símbolo para a recordação das dezenas de milhares de mulheres nativas que padeceram as diferentes ondas de genocídio colonial e, muito especialmente, em símbolo da luta por justiça para todas aquelas que hoje permanecem com paradeiro desconhecido ou cujos assassinatos não foram solucionados.
Em Rapid City, no extremo sudoeste de Dakota do Sul, no coração dos Estados Unidos, o velho celeiro Aby’s Feed & Seed da rua Número 5 foi remodelado e alojado em sua planta principal vários estúdios de arte, oficinas de costura, livrarias e exposições. É o local de reunião da Red Ribbon Skirt Society. Esse grupo de ativistas está há três anos dando alta voz e apoiando as famílias das vítimas dentro e fora das oito reservas nas quais, no final do século XIX, foram confinadas as diferentes tribos Sioux Lakota que habitavam as pradarias de Dakota do Sul.
“Lutamos contra um inimigo invisível porque, desgraçadamente, desconhecemos os autores dessa epidemia de feminicídios.” Lily Mendoza nasceu e foi criada na reserva Cheyenne River, e conhece de perto a realidade intramuros. Atualmente, vive fora de seus limites, acredita que de uma distância prudente é como melhor pode desempenhar seu trabalho voluntário presidindo a associação. “É difícil viver no interior e não se ver presa nessa espiral de violência, vícios e desesperança.” Entre outras coisas, ela questiona a divisão de competências para buscar justiça: “Muitas investigações se diluem nesse vai e vem entre policiais e autoridades tribais, locais e federais, sem que ninguém aborde os casos com determinação. Essa situação atrai os agressores e acentua a sensação de impunidade, porque sabe que as investigações relacionadas com mulheres pertencentes a comunidades indígenas são muito mais lentas, menos rigorosas, atravessam muitas fases… então as famílias geralmente desistem e os casos são arquivados para sempre”.
A quem compete?
Uma das questões que em ocasiões agrava esse conflito jurisdicional é a própria definição de ‘identidade nativa’ que cada tribo ou governo tribal reconhece segundo critérios específicos de porcentagem sanguínea. No caso dos Lakota, por exemplo, 25% de sangue nativo é suficiente para obter tal reconhecimento. Segundo o Escritório de Censo dos Estados Unidos, as pessoas indígenas (5,2 milhões) representam 1,7% do total da população. A quem compete esclarecer e julgar o assassinato de uma mulher Lakota que residia fora de uma reserva, mas cujo corpo havia aparecido dentro dos limites e todos os indícios apontavam que o homicida é um homem também Lakota? E se a mulher vivesse na reserva, mas seu corpo tivesse sido encontrado na cidade, perto de um cassino frequentado por homens brancos? E se a garota mestiça vivia na reserva, se vivia na reserva com todas as suas consequências, mas não figurava no censo como nativa? E se não houver sequer um corpo? O FBI? A Polícia Tribal? Não existe um protocolo que se aplique de maneira sistemática.
“Parece inacreditável que tais frivolidades – a porcentagem de sangue natural da vítima e de seu agressor! – possam atrapalhar a investigação de um homicídio ou desaparecimento, certo? Os governos tribais continuam exigindo maiores competências e recursos, e estão conseguindo isso, inclusive para processar infratores não nativos, mas a mudança não parece estar revertendo a nosso favor como deveria. Venha, olhe…”
Lily Mendoza nos conduz a um quarto que elas chamam de Centro para cura, oração e recordação. Numerosos vestidos vermelhos colocados em cabides estão pendurados nas quatro paredes. Fotos de meninas e jovens desaparecidas e seus nomes preenchem o espaço. Há também pinturas a óleo, apanhadores de sonhos, reproduções da estrela de oito pontas e buquês de ervas aromáticas ardendo sobre conchas para purificar a alma. “Este cantinho que você vê é o único lugar de lembrança coletiva das Missing and Murdered Indigenous Women and Girls (MMIWG – Mulheres e meninas indígenas desaparecidas e assassinadas) nos Estados Unidos.” Não existe uma única placa em todo o país, um único espaço oficialmente dedicado à memória destas pessoas.
A vulnerabilidade como legado colonial
“Quando os colonos brancos chegaram e arrasaram nossos assentamentos, se escondem com as mulheres como um botim de guerra e as violaram na presença de seus familiares. Com a humilhação pública começou a recente história de degradação e opressão das mulheres nativas e a inversão de seu papel em nossas sociedades. Passaram-se apenas 150 anos!”, conta Mendoza.
O trauma histórico é a chave que explica muito dos males que afetam os povos originários da América do Norte e que as diferentes organizações e ativistas se esmeram em explicar porque, com certeza, “é a raiz de tudo o que nos está ocorrendo”. Este contexto histórico é essencial para compreender, por exemplo, por que em Pine Ridge, a reserva mais próxima a Rapid City e a mais deprimida de todas, a esperança de vida ao nascer é de 51 anos, a taxa de desemprego alcança 89%, o alcoolismo e a dependência química atingem 85% das famílias, e apenas 5% da juventude completam seus estudos secundários. Mais outro dado: a taxa de suicídio entre adolescentes é 150% mais alto do que a média estadunidense, segundo dados do governo tribal (tribo Oglala Sioux).
“Como eles não puderam nos matar em batalha, decidiram fazer isso devagar. Os conquistadores exterminaram os milhões de búfalos que pastavam nessas pradarias para nos privar de nosso modo de vida. Sem carne para nos alimentar e sem peles para vestir e construir nossas tendas, os chefes não tiveram escolha a não ser concordar que nosso povo fosse deslocado para as reservas onde cada família recebia um acre de terra que eles não sabiam como cultivar”, explica o nosso guia. Usando os cobertores que receberam para passar os invernos frios, eles introduziram doenças que os mataram aos milhares. Através do chamado Código de Delitos Indianos de 1883, toda expressão cultural original foi proibida. A promessa de uma educação gratuita e de qualidade também se revelou uma armadilha: “Os chamados Indian Boarding Schools – continua explicando Lily Mendoza – eram internatos religiosos destinados à assimilação. De 1879 a 1973, milhares de crianças nativas foram reconvertidas, dos cinco aos 18 anos, ao ódio, ao medo e à violência. Eram tratadas como seres inferiores, selvagens estúpidos que eram xingados, espancados, insultados, humilhados e até mortos se tentassem fugir. Ao longo do tempo, soubemos de inúmeros casos de abuso sexual que, com certeza, foram muito mais do que os que vieram à tona”. Com isso, gerações de jovens vazios, desprovidos de identidade própria e sem um modo de vida ou mesmo uma atividade a que se agarrar, retornaram aos seus lugares de origem, que, como era de se esperar, pareciam estranhos.
“Os colonos brancos trouxeram dinheiro, álcool e drogas às quais nosso povo se abraçou para se evadir. Isso logo se traduziu em uma espiral de violência generalizada que chegou até nossos dias, porque geração após geração crescemos sofrendo com ela, ou convivendo com ela, presenciando-a e transmitindo-a sem encontrar uma maneira de quebrar esse círculo vicioso”, ele continua. A metanfetamina hoje é mais barata que a cerveja na reserva, e seu uso é generalizado.
Todas as fontes entrevistadas durante nossa estada na reserva testemunharam inúmeros casos de assédio, estupro, incesto, pais obrigando seus filhos a traficar drogas ou prostituí-los… Um cenário especialmente aterrorizante para as mulheres: em Pine Ridge, em 90% das casas as mulheres sofrem violência machista, mas não há uma única casa de acolhida na reserva.
“Os agressores sabem que, para a grande maioria, a vida na reserva é um inferno. Os homens que se aproximam delas sabem que muitas não hesitarão em aceitar uma carona, ou não hesitarão diante de um falso convite. Em muitos outros casos, presumimos que eles simplesmente as agridem antes de estuprá-las. Então eles se desfazem dos corpos.” Lily Mendoza e seus companheiras suspeitam que as redes de tráfico para exploração sexual e tráfico de órgãos também têm muito a ver com isso: “Sabemos que uma menina indígena virgem custa US$ 5.000”.
As ativistas da Red Ribbon Skirt Society e outros coletivos veem uma clara relação entre a localização dos chamados Man Camps, os cassinos e alguns números particularmente altos de mulheres nativas desaparecidas. Os Man Camps são assentamentos acondicionados para dezenas de homens que trabalham durante meses na construção de macroprojetos, como oleodutos. Desde que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em 2017, deu sinal verde a dois projetos congelados durante a era Obama, os Man Camps proliferaram de forma preocupante.
A construção do oleoduto Dakota Access provocou mobilizações sem precedentes em Standing Rock para proteger suas terras sagradas e as águas do rio Missouri. Recentemente, uma decisão federal ordenou a revisão das consequências ambientais da atual rota. Outro projeto, o Keystone XL, servirá para transportar 830.000 barris de petróleo por dia da província canadense de Alberta para diferentes partes dos Estados Unidos, e significará o estabelecimento de dezenas de Man Camps em território nativo.
Do total de casos de estupro e assassinato de mulheres indígenas que são esclarecidos, 70% são perpetrados por homens não indígenas, segundo dados do Bureau of Justice Statistics. O número, embora significativo, não é suficientemente representativo porque várias organizações estimam que mais da metade dos desaparecimentos, estupros e assassinatos não são denunciados, especialmente aqueles que podem envolver familiares, vizinhos ou membros de uma mesma tribo.
Visibilizar o invisível
Nas ruas de Rapid City é possível ver a foto de Larissa Lone Hill, uma jovem Lakota desaparecida em outubro de 2016, cuja família oferece US$ 5.000 em troca de informações. “Larissa foi Miss Indian World, por isso seu caso saiu na mídia… e também porque sua família tem dinheiro para financiar esta campanha”, explica Mary Black Bonnet, que sobreviveu a um estupro. “Fui a uma delegacia da Polícia Federal onde, após denúncia, me disseram que não podiam fazer nada porque ele era um nativo indigente. Perdi a audição por causa dos golpes que ele me deu. Peguei minha filha e viemos para Pine Ridge, de onde minha família era.” Juntamente com os membros da Red Ribbon Skirt Society, ela está completando seu próprio processo de cura.
Além dos centros urbanos adjacentes às reservas, tudo o que se relaciona com os povos originários é praticamente invisível nos Estados Unidos. Não têm presença na imprensa geral nem na televisão e se o fazem é através de personagens estereotipados; nem no campo da publicidade, com exceção dos altamente sexualizados trajes de Halloween de ‘índios’ e ‘índias’; eles não têm lugar no setor cultural e artístico… sua presença é mínima, mesmo em comparação com os grupos afro-americanos e latinos.
“Através de passeatas e outras formas de protesto, estamos levando o assunto para as ruas e pressionando a mídia para relatar esse drama”, diz Black Bonnet. “Estamos em contato com associações amigas do Canadá, estamos criando uma rede interessante.” Entre as reivindicações, uma dirigida diretamente às autoridades competentes: “A absoluta falta de confiança na justiça, a ineficiência da polícia e o sentimento de impotência são os principais motivos pelos quais as famílias não denunciam. Porque os preconceitos e estereótipos em torno das comunidades indígenas afetam negativamente a maneira como as autoridades abordam e processam esses crimes”.
A vergonha, a culpa, o complexo, o medo, o isolamento… também parecem pesar como fatores dissuasores. Por isso, o trabalho ‘dentro’ das organizações é tão importante: “Ao assessorar as famílias em seus processos, conseguimos que muitas outras tomem a determinação de acabar com o silêncio. Todas as semanas recebemos telefonemas que nos falam de filhas, sobrinhas, primas… que perderam inclusive há 30 anos”. Black Bonnet explica que as diversas formas de violência sistemática exercidas sobre os povos indígenas, e contra as mulheres indígenas em particular, acabaram sendo percebidas como algo quase intrínseco à sua identidade. “Mas, em Pine Ridge, os homens lançaram mais de uma iniciativa para repensar seus papéis e seu modelo de relacionamento com as mulheres. Os mais antigos tentam nos lembrar, por meio de nossa tradição oral, como era a vida em nossas comunidades antes da chegada dos colonizadores. E as mulheres, pouco a pouco, estão começando a perceber que agressão sexual não é algo para se sentir culpada, envergonhada ou desonrada. Eles começam a fazer perguntas, e isso é um passo muito significativo.”
Este trabajo directo con las comunidades permite además crear una base de datos cada vez más sólida para determinar el número exacto de MMIWG, unas 5.500 en Estados Unidos. En Canadá, la iniciativa Walk 4 Justice de la Native Women’s Association of Canada las cifra en aproximadamente 4.500. Amnistía Internacional Canadá recoge en su informe ‘No More Stolen Sisters’ que la probabilidad de que una mujer nativa norteamericana de entre 25 y 44 años muera asesinada es cinco veces mayor que para el resto de mujeres.
Esse trabalho direto com as comunidades também permite criar um banco de dados cada vez mais sólido para determinar o número exato de MMIWG, cerca de 5.500 nos Estados Unidos. No Canadá, a iniciativa Walk 4 Justice de la Native Women’s Association of Canada as coloca em aproximadamente 4.500. A Anistia Internacional do Canadá afirma em seu relatório ‘No More Stolen Sisters’ que uma mulher nativa americana entre 25 e 44 anos tem cinco vezes mais chances de ser assassinada do que outras mulheres.
Reportagem de Igone Mariezkurrena publicada em Pikara online magazine em 8 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/02/vestirse-de-memoria-y-justicia/
Tradução: Luiz Morando
