Um dos objetivos dos movimentos queer teria que ser tentar desvanecer muitos tipos de rótulos que tomamos como naturais, como inerentes ao ser humano. Em muitos círculos acadêmicos, a memória é uma questão muito importante: lembrar o que aconteceu ou o que vem acontecendo em determinados contextos é considerado uma prioridade, muitas vezes com o objetivo de fortalecer uma ideia de nação ou identidade nacional.
Talvez aqueles de nós que se dedicam a essa questão, a passar a vida provocando questionamentos sobre a biopolítica, se perguntem: o que a teoria queer teria a dizer, com base em seu trabalho, sobre a ideia de nação, a formação de identidades e, por outro lado, o papel da memória nos movimentos queer?
Bem, se você quiser, começamos com a questão da nação. Eu a vejo como central em análises queer e pós-coloniais ou anticoloniais. Acho que há uma relação entre a construção da identidade de gênero e sexual e a da identidade nacional. Como se de alguma forma o dispositivo heterossexual fosse também uma máquina de reprodução nacional. E digamos que neste programa de reprodução nacional, gênero, sexualidade e raça estão obviamente entrelaçados. Acho que há muito trabalho a fazer. Por um lado, tenho a impressão de que uma história, realmente uma genealogia política da colonização, ainda não está completa. É um trabalho que ainda estamos fazendo. No meu caso, porque nasci na chamada nação espanhola, o que pode parecer bastante consistente, mas é quase uma confederação de pequenas nações em conflito, porque a situação na Catalunha e no País Basco é tremendamente conflitiva e exigem estatutos de nacionalidade no contexto espanhol, por exemplo. Estou pensando, muito rapidamente, na primeira vez que trabalhei com teorias queer, em práticas queer nos Estados Unidos, depois passei pela França e muito tempo depois cheguei à Espanha, ou à nação ou Estado espanhol, e a primeira vez que dei uma conferência lá fui convidado por um grupo de esquerda nacionalista catalão, e quando comecei meu discurso era completamente pós-identitário e, portanto, uma das minhas críticas era à ideia de nação: disse que basicamente era a plataforma sobre a qual se assentavam os modelos de reprodução de gênero e heterossexual e racial. Bem, isso foi incrível. Esse grupo, que de alguma forma trabalhava com várias políticas identitárias nacionalistas muito fortes contra o Estado espanhol, de repente se deparou com esse discurso pós-identitário e, bem, aquilo acabou em conflito. Ou seja, paradoxalmente, aquele grupo que em termos de gênero e sexualidade estava disposto a aceitar proposições pós-identitárias, não estava em termos nacionalistas.
Atualmente, sou muito crítico das políticas de imigração e construção de fronteiras da comunidade econômica europeia. Parece-me que é muito parecido com o que acontece com os decretos de imigração americanos que Obama aprovou. Acredito que da mesma forma que parece absolutamente inviável que hoje continuemos a considerar as categorias naturais homem/mulher, homossexual/heterossexual, quando de alguma forma geram propostas políticas que determinam programas biopolíticos – e quando digo biopolítico quero dizer simplesmente a sobrevivência do indivíduo em um contexto político preciso. Da mesma forma que estou criticando essas noções, uma das questões que me parece fundamental é a de pertencer a uma nação por ter nascido naquele lugar e a impossibilidade de livre circulação de corpos.
O capitalismo – ou o hipercapitalismo contemporâneo – tem uma mobilidade absolutamente fabulosa de mercados e moedas. É paradoxal que os corpos não possam se mover da mesma forma que o mercado hipercapitalista. Por isso apontei a importância de um projeto de internacionalismo queer. Acredito que não podemos enfrentar a mobilização de posições identitárias ou hipernacionalistas.
Tenho a impressão, nesse sentido, de que a política queer pós-identitária propõe um modelo de desconstrução da nação que… Evidentemente, o risco é qual pode ser o nosso apoio para tornar política uma lei em que tenhamos desconstruído a ideia de mulher, mesmo que derrubemos a ideia de nação, porque acho que é aí que está a questão, uma aliança transnacional que de alguma forma coloca, se quiserem, um programa contrabiopolítico, um programa de resistência aos dispositivos de reprodução e gestão da vida. Em outras palavras, acredito que o resultado final não é que a ideia de nação seja biopolítica, é que é um mito absolutamente obsoleto, porque as nações agora só existem como fronteiras políticas, e porque, obviamente, no contexto do hipercapitalismo global estão constituídas por uma infinidade de pequenos grupos.
Obviamente estou mais próximo da situação da comunidade europeia. É surpreendente que a partir da Alemanha se decida o futuro económico e político de vinte e sete países, alguns dos quais nem sequer pertencem à comunidade econômica europeia, em que as fronteiras são reguladas em função das necessidades do mercado centro-europeu.
Mais do que reivindicar nacionalidade ou apropriar-se de ideias de ultraidentidade diante de uma espécie de globalização, acho que é realmente urgente criticar o nacionalismo e traçar uma aliança transnacional, que eu chamaria de multitudes queer, não pensando nelas como um novo motor da história, como uma esquerda tradicional, como se nos coubesse novamente nos enquadrar em um novo regulamento; mas como a possibilidade de reinventar outros tipos de relações, outras formas de reprodução que não são estritamente heterossexuais, que não correspondem à produção racial e biopolítica herdada do século XIX pela cultura coletiva. Claro que ainda está para ser inventado, mas acho que também faz parte do entusiasmo pela política queer ou transgênero ou pós-queer ou o que quisermos.
Sobre a ideia de memória, o que te dizer? Costumo desconfiar dos projetos de memória histórica, porque sempre são apresentados como tendo afinidade com o passado histórico, como recuperação da memória histórica, mas na realidade sabemos bem que – como nos ensinou Derrida, falando do arquivo – na realidade todo projeto de memória histórica é um projeto de algo novo que de alguma forma constrói, por exemplo, uma nova ficção nacional, ou constrói um mito a partir do qual se pensa construir um determinado quadro social.
No contexto que conheço, que é espanhol ou europeu, os projetos recentes de memória histórica que têm a ver, precisamente, com a abertura das sepulturas da Guerra Civil, ou seja, com tirar os trapos sujos da nossa história, fico com a impressão de que tendem a ser feitas de forma relativamente oportunista, para fins políticos, para não dizer eleitorais. Estou muito preocupado com esta questão do arquivo – e estamos trabalhando nisso com outros agentes culturais, políticos e ativistas –, porque acredito que é absolutamente fundamental que haja um arquivo de “minorias”, mas que não inicie um modelo de história de construção de memória, ou uma grande memória, ou uma memória da nação. Ou seja, a partir das práticas queer se propõe outra forma de fazer história, que não é geográfica, não é a de exaltação ou “vamos tirar essas figuras perdidas”. Acho que algo muito parecido aconteceu com a recuperação das mulheres na história, ou com a história feminista…
Ou da literatura de mulheres…
Ou sobre a literatura das mulheres, que consiste basicamente em acrescentar três ou quatro notas de rodapé à grande história, uma delas seria desenterrar esses pequenos exemplos. Acredito que, desse ponto de vista, um projeto de memória histórica que tenha esse propósito não faz nenhum sentido político para nós, pelo menos do ponto de vista crítico e radical das “minorias”. Tenho a impressão de que para nós se trata de mudar as formas de fazer história; se você quiser, em parte, transgredir as distinções tradicionais entre história e ficção, por exemplo, ou entre história e política.
Muitas vezes, não só eu, mas também minhas colegas acadêmicas, pensamos no que seria uma história, uma memória histórica dos movimentos lésbicos, o que pode ser, em parte, uma ficção, porque não teríamos nenhuma convenção, não haveria elemento sobre o qual pudéssemos, em termos clássicos de história, guardar algum documento a partir do qual possamos fazer um ícone historiográfico.
No caso da história das “minorias”, tenho a impressão de que não se trata tanto de reescrevê-la, mas de modificar as gramáticas com que se pensa a história, talvez não se trate de reescrever o passado, mas de modificar os modos como pensamos o futuro, parece-me mais importante.
Com isso não estou dizendo que a história não é importante…
Não, de fato, a teoria queer necessita da História…
Claro, acho que a história é absolutamente crucial. Tenho a impressão de que em muitos grupos queer contemporâneos uma das questões importantes é a produção de um arquivo próprio, que não consiste em dizer “bom, vamos selecionar não sei quais práticas ou não sei quais intervenções e então que venha o historiador e faça a história dos movimentos”. Não, trata-se do ativista ser um historiador crítico de suas próprias práticas. Portanto, ao mudar a forma como pensamos sobre nossas práticas hoje, estamos mudando também a forma de pensar 1968, a forma de pensar a Guerra Civil. Ou seja, não só tirar aquelas duas ou três figuras das mulheres que morreram na guerra ou da lésbica que… etc., etc.
Trata-se de gerar outra figura de produção de conhecimento que é o ativista arquivista ou o ativista historiador crítico, capaz de gerar algo como uma ordem de conhecimento de suas próprias práticas e que não espera que o grande historiador venha escrever a grande história e considere os movimentos queer como notas de rodapé aqui ou ali.
Acho que muitos de nós pensam em como realizar esse projeto. Na verdade, agora estou trabalhando muito no período da ditadura. Estou trabalhando em um projeto chamado Biopolítica do Franquismo, no qual convidei pessoas como Roberto Esposito para trabalhar, em questões de imunidade e biopolítica, porque me dá a impressão de que até agora o franquismo trabalhou com categorias historiográficas tremendamente clássicas e tradicionais, em que, por exemplo, a questão da sexualidade ou das “minorias” era absolutamente marginal, quando acredito que não podemos compreender a própria estrutura das ditaduras – e aqui a visão poderia ser compartilhada com muitos casos na América Latina – sem pensar em um conjunto de regimes de gênero, reprodução sexual, incluindo reprodução racial e nacional que estão na base de projetos ditatoriais. Portanto, essas questões não são apenas pequenas notas de rodapé como um pequeno projeto de recuperação da memória histórica, de “ah, vamos tirar do armário o ativista queer ou o ativista homossexual que foi morto naquela prisão”, ou a figura de Lorca, “que pena, eles o mataram porque ele era gay”.
A questão não é apenas retirar a figura da submissão, mas pensar os fundamentos de gênero, sexuais, raciais que estão na base da biopolítica da ditadura. E temos que pensar até que ponto somos herdeiros desse projeto biopolítico. Isso é o que acontece no contexto espanhol de muitas maneiras e seria interessante ver até que ponto o caso da Argentina, Chile ou México pode ser semelhante, de outras maneiras. Tenho a impressão de que as democracias contemporâneas foram, em parte, herdeiras acríticas dos projetos de normalização de gênero e sexualidade e de racialização que estavam na base desses programas ditatoriais.
Por isso, sou muito crítico dessa questão da memória histórica, chega de “vamos recuperar a figura”, e vamos mesmo a uma crítica das raízes, se você quiser sexo-políticas, para chamar de alguma forma, até racial e político dos projetos ditatoriais, para pensar na história que nos aproximaria da questão das ditaduras dos anos quarenta, cinquenta.
Parece-nos uma questão importante devido à situação política em que se encontra boa parte dos movimentos gays no México, por isso é difícil entrar com a teoria queer quando o outro mal está “ganhando” terreno e parece ser o “prioritário”. Então, eles dizem: “como você me pede para esperar por um processo mais longo…”
Sim, mas acho que essa pergunta é mais como pensar, se quiserem, em diferentes práticas políticas que não precisam ser excludentes, por isso estou falando de vários modelos de poder que exigem diferentes formas de ação política. O fato de tentar ampliar o horizonte democrático reivindicando direitos que excluem certo número de cidadãos da esfera pública me parece absolutamente fundamental. Isso não significa que ao mesmo tempo não sejamos capazes de dizer “bem, continuemos pensando que talvez a prioridade seja mudar a própria estrutura da esfera pública, modificando suas instituições”, por enquanto, de forma que não sei se é estratégico ou em todo caso conjuntural, talvez seja necessário atuar em várias frentes ao mesmo tempo. Do meu ponto de vista, essa é a riqueza da perspectiva histórica que vem dos anos 1980 pra cá.
Entrevista de Paul B. Preciado à Revista de la Universidad de México, publicada em março de 2019. Disponível em: https://www.revistadelauniversidad.mx/articles/35cc19c1-a73d-4531-947c-00243cc2d608/entrevista-con-paul-b-preciado
Tradução: Luiz Morando.
