Em dezembro passado houve um aumento terrível no número de feminicídios cometidos na Espanha. Todos os alarmes sociais, políticos e midiáticos dispararam… O que aconteceu a seguir pode nos dar uma ideia de que o quadro discursivo e ideológico no qual enfrentamos essa questão mudou e não é o mesmo de alguns anos atrás.
Diante do aumento dos homicídios, de um lado, o que se instala de alguns setores (e acaba indo para o centro do debate) é o argumento de que algo está muito errado. Embora seja sempre necessário criticar a si mesmo e seja sempre necessário apontar as falhas e buracos do sistema (sempre há), até recentemente a união e a consciência coletiva de que um caminho percorrido em que muito já foi feito foi mantido. Quando se afirma que os assassinatos machistas ocorreram porque o sistema (ou melhor, o Governo) falhou, o que se faz é transformar a violência de gênero em uma arma política lançada entre partidos e entre feministas. Isso pode ser inevitável dada a situação política geral, o comportamento da mídia, o surgimento do Podemos, as redes sociais, o trumpismo, os debates intrafeministas etc., mas terá consequências terríveis a longo e curto prazo.
A realidade que não devemos esquecer é que são poucos os países onde se combate a violência de gênero como na Espanha. Se olharmos para os números dos feminicídios (a violência de gênero mais extrema) ou das diferentes formas de violência de gênero, veremos que a ideia de que há muitos assassinatos na Espanha não é real. Partimos também do fato de que 2022 foi um dos anos em que o número de assassinatos sexistas foi menor. Este é o resultado de um trabalho contínuo de décadas. Hoje continuamos a ser pioneiros. Não há país no mundo em que, diante de um aumento de feminicídios como o ocorrido em dezembro, três ministérios da importância do Interior, da Justiça e da Igualdade tenham realizado uma cúpula política de emergência para tratar do assunto e tentar resolver os problemas as falhas mais visíveis no sistema de proteção às vítimas. Poucos países contam com tantas ferramentas, com um orçamento maior (e crescente) e – até agora – com um tratamento midiático mais adequado.
Os números vêm caindo há anos, mas começam baixos se os compararmos com outros países europeus. De acordo com uma análise epidemiológica da violência de gênero na União Europeia, a Espanha é, com 2,3 feminicídios por milhão de mulheres, o país com o menor índice de feminicídios de toda a Europa. Como fato digno de nota, países com níveis muito altos de igualdade de gênero e bem-estar social, como Dinamarca ou Suécia, são também os que sofrem o maior número de feminicídios (sem falar em outros tipos de violência). Até poucos anos atrás, os altos índices de violência sexista em países como a Suécia, que lidera o ranking em igualdade de gênero, eram atribuídos a algum tipo de viés oculto, como mais denúncias ou maior visibilidade, mas um estudo de 2019 feito entre as universidades de Valência e Mälmo já constataram que a realidade é o que parece, que no país nórdico há índices mais elevados de violência contra as mulheres. De fato, o inquérito da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais mostra que uma maior igualdade de gênero conduz a mais violência e são os três países nórdicos, os mais igualitários, que apresentam as taxas de violência mais elevadas.
Embora seja um fenômeno com muitas arestas, não é difícil perceber que há algo que une maior igualdade com mais violência. Rita Segato afirma, para o contexto latino-americano, que nunca houve tantas leis de proteção, nunca houve tanta capacidade de denúncia, leis, políticas públicas, instituições, mas que a violência letal, longe de diminuir, aumenta. Temos que ser capazes de incorporar essa realidade em nossas estruturas discursivas e políticas por várias razões. Não haverá uma sociedade de zero violência contra a mulher no curto prazo, assim como não haverá uma de zero crimes; e se afirmarmos que isso é possível no curto prazo, estaremos fomentando dinâmicas profundamente reacionárias que nada farão para combater a insegurança ou apoiar as vítimas.
Por um lado, ao culpar certos governantes identificados como ineficazes, e até inimigos, pelo que está acontecendo, não se aponta as causas estruturais que geram a violência, ou seja, o sistema patriarcal, a desigualdade, que cada vez menos nomeamos. A violência machista aparece, cada vez mais, como isso que o feminismo não queria, como obra de homens violentos, meio loucos, como algo que se pode isolar. A violência sexista não é uma excrescência do patriarcado, é o próprio patriarcado. Estamos escorregando para uma posição em que imaginamos que tal violência pode ser tratada quase que exclusivamente como um problema de segurança ou eficiência policial, o que contribui para favorecer a ideia de que a solução é uma lei penal cada vez mais dura (o punitivismo banal). Assim, a questão é despolitizada e a violência contra a mulher deixa de ser uma questão de igualdade, democracia e direitos humanos para ser uma questão de segurança e eficiência da administração, o que dá aos inimigos do feminismo uma poderosa arma política que podem usar contra as mulheres, além de ajudar a sociedade a esquecer que existe violência porque existe desigualdade. Vale lembrar que ficou demonstrado que penas maiores e mais alarme social não fazem com que esses crimes reduzam em um sequer.
Além de despolitizar (e isso é dramático quando falamos de feminismo), a questão também é banalizada. Se a culpa pelo aumento dos homicídios é desse Ministério da Igualdade, quando outro partido assume este ministério e a violência não para, a culpa é desse outro partido e assim por diante e para sempre. Engana-se quem pensa que uma vez no poder poderá redirecionar a questão para quadros ideológicos anteriores. É um caminho sem volta.
Por outro lado, o fato de essa violência ser espetacularizada pela mídia e politicamente não pode deixar de gerar, a longo prazo, desafetos políticos e feministas; desesperança e frustração. Essa atitude, por sua vez, alimenta ideais antidemocráticos de vingança e cerceamento de direitos, maior distanciamento político e institucional, ansiedade social e tudo isso vai repercutir no esgotamento do ativismo, dependendo se não estamos nos aproximando desse ideal com a rapidez que gostaríamos, por enquanto inatingível, de violência zero. Todas essas questões alimentam sentimentos antipolíticos e nutrem a extrema-direita. Continuarão havendo assassinatos enquanto houver patriarcado, infelizmente; a questão é exigir mais igualdade, mais feminismo e mais democracia para combater a violência; a chave está em incidir na unidade feminista e política, explicar aos jovens que a violência é o fim de uma cadeia de desigualdade.
Claro que sempre se pode fazer mais e melhor, e essa cobrança faz parte da política. Claro que há falhas que é fundamental enfrentar, mas afirmar que um governo ou outro é culpado dessa violência ou dizer que ela desapareceria com “boas” políticas é desonesto com o feminismo e contraproducente. Podemos passar de um país exemplo no tratamento da violência de gênero a ser qualquer um daqueles que usam essa violência para conquistar eleitores ou simpatizantes, atacar outros partidos ou impor certas políticas antidemocráticas.
Não se deixe levar pelo desespero, mas insista. É difícil pensar ou escrever enquanto mulheres são assassinadas, mas se pararmos de apontar que a luta é contra o sistema patriarcal, estamos perdidos. Vamos pensar de onde viemos, não vamos converter a violência em uma arma de arremesso e vamos continuar construindo uma sociedade cada vez mais igualitária na qual a violência contra a mulher seja uma lembrança ruim.
Artigo de Beatriz Gimeno publicado em Pikara online magazine em 25 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/01/la-violencia-de-genero-no-es-un-arma-arrojadiza/
Tradução: Luiz Morando.
