Coralie Smeers tem 15 anos e suspeita que seu corpo não está fazendo o que deveria. Ela sabe que suas colegas de escola já menstruam. Na TV, as meninas da idade dela parecem felizes porque os absorventes absorvem um líquido azul que ela procura na calcinha. Para ela, olhar os absorventes é como se cortar com uma folha de papel.
É inverno de 2009 em Bruxelas, na Bélgica, e Coralie acha que um médico terá a resposta para saber por que seu corpo não está sangrando.
Alguns meses se passam. Coralie e sua mãe esperam no hospital infantil no norte da cidade. É um prédio marrom com janelas como fileiras de dentes minúsculos. O corpo de Coralie é diferente, confirma o homem de jaleco branco. Só que ele não diz assim, cita uma síndrome impronunciável, Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, caracterizada pela ausência total ou parcial da vagina e do útero. Depois, sem esconder o entusiasmo, acrescenta: “Você é o primeiro caso de toda a minha carreira”.
Coralie Smeers não retém o sobrenome dos quatro senhores que batizaram o que acontece com ela. O que ela ouve é que é uma mulher incompleta, como se em vez de um vão entre a vulva e o colo do útero apenas apontassem um vazio em sua identidade. Um erro que, dizem, ela deve corrigir prontamente para se considerar e ser considerada uma mulher.
Uma década depois, Coralie Smeers descobrirá que é intersexo. Então – naquela consulta, diante daquele médico – ela não tinha como saber que seria a primeira mulher intersexo na Bélgica a denunciar um hospital inteiro, aquele mesmo hospital, por falta de consentimento informado e erro médico.
Um.
A primeira lembrança de Coralie é uma piscina. É minúscula, de plástico. Ela está dentro fazendo ondas com os pés. Sua mãe, sentada a poucos metros de distância em um jardim, para de ler uma revista e olha para ela. Isso é tudo. Ele não sabe ao certo onde fica, mas provavelmente foi de Mons, na Bélgica, onde a família morou até o final dos anos 1990.
Pouco depois do nascimento de sua irmã Elodie, cinco anos mais nova, e da mudança para Bruxelas, seu pai e sua mãe se separam. A mãe combina vários trabalhos enquanto a menina Coralie sonha em salvar todos os animais. O que ela mais gosta na escola são os treinos de ginástica depois das aulas. Se ela cai ou é atingida, ela se levanta e continua. Porque a dor não importa, então. Ela quer voar e ser a melhor.
Ela tem 12 anos quando nasce sua segunda irmã, Estelle, e se mudam para a casa de seu ex-padrasto. Um ano depois, nasce Tristan. Um ou dois verões depois, alguns meses antes de sua primeira visita ao médico, antes daquele ano no hospital, de sua cadeira de rodas e seu cabelo raspado, Coralie passa as férias na casa de seus avós no interior da Bélgica. Há muitos meninos e meninas lá e pouco a fazer. Os mais velhos passam o tempo assistindo a clássicos do anime na TV, como Dragon Ball ou Bleach.
Coralie sempre gostou de desenhos animados, mas aos 15 anos, as séries infantis são pouco conhecidas por ela. O anime é outra coisa. É uma porta para a parte do mundo adulto que a intriga e mostra a relação com a natureza, a discriminação, a solidão, o sentido do dever coletivo. O anime ensina a ele como outras vidas acontecem longe da Bélgica.
Embora não tenha começado a desenhar naquela época, aqueles dias de verão semeiam um pouco de interesse. Anos depois, ele se acostumará a ter seu próprio estande em alguns dos salões de mangá mais importantes fora do Japão.
Dois.
Coralie não poderá ter filhos ou filhas biológicos, diz o homem de jaleco branco, mas poderá ter relações sexuais porque existem tratamentos para aumentar a cavidade vaginal.
Quando fala em relação sexual, o médico está falando de uma prática muito específica: a penetração. Ou seja, ele se propõe a alterar uma parte do corpo dela para que possa acomodar um pênis de tamanho médio. Ou seja, faz com que ela entenda que é mais importante que seu corpo esteja pronto para a relação sexual do que manter uma parte dele intacta.
Coralie ainda não beijou ninguém, nem sabe de quem ela gosta. Para ela, a única coisa urgente é recuperar o privilégio da normalidade. Em junho, é internada em uma clínica psiquiátrica por uma semana por depressão.
Em setembro de 2009, cinco meses após sua primeira visita ao hospital infantil, ela foi informada sobre a vaginoplastia sigmoide, cirurgia para criar uma neovagina a partir de um pedaço de tecido do cólon. Coralie entende que a operação é uma solução rápida e segura. Que em breve poderá virar a página. Que, com sua experiência, seus médicos poderão ajudar outras meninas.
Três.
A intersexualidade não é uma identidade de gênero, nem uma orientação sexual. Audrey Aegerter, ativista e pesquisadora suíça, explica que pessoas intersexo são “aquelas que nascem com características sexuais, como cromossomos ou hormônios, ou que as desenvolvem na adolescência, como seios ou pelos, que não correspondem à definição atual de masculino ou feminino”. Ela põe ênfase sobre o adjetivo atual. “O que consideramos atualmente como sexo feminino evoluiu muito, assim como a definição do sexo masculino”, diz.
Ainda hoje, em todo o mundo, corpos saudáveis de crianças intersexo são operados para caber na caixa masculina ou feminina. Não há uma doença. Não se busca uma cura, mas modificar os corpos que fogem do binarismo porque a norma repousa sobre isso.
Em 2019, o Parlamento Europeu condenou essas cirurgias e tratamentos chamados corretivos. O Conselho da Europa e as Nações Unidas também pediram aos governos que protejam essas pessoas, que representam 1,7% da população mundial, um número equivalente ao dos ruivos. Na Espanha, assim que o Senado aprovar a lei trans, as cirurgias não essenciais serão proibidas em todo o território até que as crianças intersexo completem 12 anos. Em Aragão, Ilhas Baleares, Madri e Comunidade Valenciana, já foram proibidas.
O governo belga também planeja proibir a mutilação genital em meninas e meninos intersexo que não podem dar seu consentimento informado. Será o sétimo país da Europa depois de Alemanha, Islândia, Malta, Portugal, Grécia e, em breve, Espanha a tomar esta medida.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos fala em violência médica contra pessoas intersexo para se referir a cirurgias irreversíveis de suposta normalização sem consentimento informado, esterilização involuntária, submissão excessiva a exames médicos, fotografias e exposição dos órgãos genitais, falta de acesso a informações médicas e histórias clínicas, negação de serviços de saúde, entre outros.
A história de Coralie contém quase todos os elementos da lista
A operação ocorre em 14 de janeiro de 2010. Uma médica viaja da Argentina para realizar a intervenção, vez que nunca foi realizada naquele hospital. Tem duração de oito horas e é filmada do começo ao fim. Nos dias seguintes, alunos e equipe médica do hospital pedem a Coralie que lhes mostre o resultado de algo nunca feito antes.
No dia 22, Coralie recebe alta, apesar de reclamar de fortes dores.
No dia seguinte, deu entrada no pronto-socorro após expelir fezes pela neovagina.
No dia 26, ela foi operada novamente para reparar o erro e separar a neovagina e o cólon. Ela adoeceu com pneumonia e permaneceu internada até 8 de fevereiro.
Nos meses seguintes, Coralie sofre dores terríveis e constipação permanente que a levam a entrar e sair constantemente do hospital.
Finalmente, eles propõem anestesiar a dor injetando um corticosteroide. Essa intervenção ocorre em 4 de julho de 2010. A partir de então, Coralie tem dificuldade para andar. Eles dizem a ela que a causa é psicogênica, ou seja, que está em sua mente. Num dos hospitais por onde passa, sugerem vivamente que vá para casa, mas não lhe fornecem muletas nem cadeira de rodas.
Em junho de 2012, quando mal consegue andar, Coralie registra uma queixa contra o hospital infantil. Nos últimos seis meses, ela tenta obter seu histórico médico, mas o que lhe mandam do hospital é, por exemplo, a lista de cardápios que comeu enquanto estava internada. Ela recebe o dossiê completo apenas quando sua advogada intervém.
Em 2013, começam as dilatações vaginais. Evitá-las foi a razão pela qual Coralie concordou com a cirurgia. Ela não tolera o tratamento, que acaba sendo cancelado. Sua condição física se degradará até que ela esteja em uma cadeira de rodas.
Para Coralie, assumir-se como pessoa intersexo foi um alívio e uma tristeza. Por um lado, ela se sentia leve e legítima porque não estava sozinha. Por outro lado, saber que não estava sozinha significou tomar consciência de que mais pessoas, falantes ou não de outras línguas, que moram longe ou perto, compartilham experiências e dores semelhantes.
Cinco.
“A operação não deveria ter sido realizada.”
Diz uma das advogadas de Coralie em uma pequena sala do tribunal de apelações. Do lado de fora, o Palácio da Justiça de Bruxelas é um labirinto colossal e eclético coberto por dez mil metros de andaimes. É 9 de janeiro de 2023.
“A operação atingiu o objetivo esperado.”
Diz o advogado, que chegou meia hora atrasado e representa o hospital.
“Ninguém me disse que meu corpo podia existir como era.”
Diz Coralie quando os advogados terminam, dirigindo-se às quatro mulheres vestidas sentadas no estrado. O dedo da segunda advogada treme sobre seu lábio. O pai levanta os óculos e enxuga os olhos. De costas para aqueles de nós que não estão vestindo preto, a voz de Coralie falha, mas ela continua: “Estou furiosa”.
Em 2018, oito anos após sua operação, o tribunal da primeira instância civil de Bruxelas decidiu que, embora o erro médico não fosse imputável por se tratar de uma operação complexa, o hospital era culpado de prescrever a referida cirurgia e não obter o consentimento informado de Coralie e sua mãe. O hospital recorreu da decisão. Essa apelação é o que está sendo discutido agora.
A mulher que ocupa o centro do estrado diz que a sentença sairá no dia 14 de fevereiro.
Entre as centenas de documentos fornecidos, não há nenhum que mostre que Coralie tinha a opção de não operar, que ninguém do hospital a informou dessa possibilidade.
Seis.
De quando começou a desenhar, só se lembra de ligar para a mãe e pedir cadernos, tintas e cópias de mangás na impressora de casa. O pior de estar no hospital, depois da dor e do medo, era o tédio. A princípio, ela apenas copiava e se animava ao ver que estava aprendendo. Logo ela começou a desenhar desde a hora que acordava até a hora de dormir. Os desenhos cobriam a cama, o chão e a bandeja do almoço.
Anos depois, quando seu psicólogo pediu que ela escrevesse sua história, Coralie a desenhou em cores opacas. Foram as vezes em que sentiu sua palavra sendo descartada como um inseto que se aproxima demais do rosto. Por exemplo, a noite no hospital quando ela mordeu a mão para transferir a dor para outra parte do corpo e as enfermeiras responderam que ela estava exagerando.
Em seus quadrinhos atuais, Coralie é desenhada dizendo “isso me queima”, “me dói”, “não”, “não quero”, “não é normal”, “estou com medo”, “odeio meu corpo”, “não sinto meu corpo”, “me sinto suja”. Ela usa os painéis como tijolos para construir uma versão irônica e sinistra de si mesma, explícita e rica em detalhes, porque olhar para o horror de olhos abertos pode ser curador. Para as pessoas que a leem, Coralie parece ser alguém de mau humor. Outros, nas convenções das quais participa, como a Japan Expo em Paris, sobem ao seu estande para dizer “eu acredito em você”. Para outras pessoas intersexo, os quadrinhos de Coralie são um reflexo de seus próprios sentimentos.
Ela fala asperamente porque se sente separada de sua experiência, como se tivesse acontecido com outra pessoa, diz ela, mas uma vez por semana ainda tem pesadelos. Neles, ela revive os tempos em que lhe impuseram as dilatações vaginais. “Os estupros”, esclarece. Só nos sonhos, aliás, os médicos zombam dela cara a cara.
Coralie sabe que poderia contar sua história de outras formas, o que ela não pode conceber é não a contar: “Preciso que a verdade esteja escrita em algum lugar, que haja provas, porque distorceram tanto minha palavra e minha experiência, que tenho medo de que minha vida não passe de uma mentira. É estúpido pensar nisso porque sei que não é mentira.”
Como ela mantém o cabelo muito curto, às vezes estranhos a chamam de senhor, conta divertida.
“Homem ou mulher… eu não dou a mínima. São categorias que não significam mais nada para mim, que não me importam mais”.
Reportagem de Ana Muñoz Padrós publicada em Pikara online magazine em 25 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2023/01/el-consentimiento-de-coralie-smeers/
Tradução: Luiz Morando.
