Contra la banalización del feminismo (Txertoa, 2021) surge de um regresso, do retorno de uma vida de quatro anos em Berlim, uma época em que o movimento feminista no Estado espanhol alcançou grande visibilidade pública e em que a crítica e a perspectiva feminista começaram a penetrar em diferentes setores. “Percebi que algo havia acontecido. Quando saí, eu era uma feminista muito radical e quando voltei vi que todo mundo era muito mais radical do que eu e queria saber o que tinha acontecido nessa sociedade naqueles anos”, conta Maria Gorosarri, pouco antes de apresentar o livro na livraria Louise Michel, de Bilbao.
Formada em Jornalismo, Direito e doutorado em Comunicação, Gorosarri, que costuma fazer pesquisas sobre memória histórica, é professora da UPV/EHU e passou várias temporadas na Alemanha. Foi para lá no momento do assassinato de duas mulheres em Bilbao por Juan Carlos Aguilar em 2013, e voltou de lá em 2017, quando ia acontecer o julgamento pela agressão sexual múltipla de San Fermín.
O que aconteceu nos três anos que você esteve na Alemanha? Qual foi a sua conclusão?
É o que diferenciei entre identidade feminista e consciência feminista. É verdade que a identidade feminista atingiu uma proporção social inimaginável há dez anos: então o que acontecia era o que se chama de “paradoxo feminista”, que muitas pessoas concordavam com os objetivos do feminismo, mas se recusavam a se declarar feministas publicamente. E, no entanto, agora penso que somos o contrário: todos entendem os objetivos do feminismo, os endossam, consideram que seriam necessários ou indispensáveis para uma sociedade mais justa, por isso se autodenominam feministas; no entanto, isso não implica nenhum compromisso pessoal ou social, nem no nosso dia a dia, nem no nosso trabalho, nem no nosso papel que desempenhamos na sociedade.
Não houve um aumento no engajamento?
Compreendemos a opressão da mulher em nível teórico, mas não temos dado tanta importância a criar uma alternativa ou viver a vida que deveríamos viver, levando em conta as condições materiais. Refiro-me ao fato de saber que eles vão nos atacar, mas não temos trabalhado tanto para repelir ou responder a esses ataques. Ainda estamos lidando com as consequências individuais dessas violências.
Falta uma leitura coletiva?
Sim. Por um lado, mais coletiva e, por outro lado, uma tomada maior de consciência por esse coletivo que implica que sua vida tem que mudar.
Você escreveu que o feminismo é uma subjetividade individual, mas se caracteriza por ser um movimento coletivo.
Historicamente, sempre. A questão é se, nos últimos dez anos, quando se popularizou, isso se manteve ou as expectativas políticas diminuíram? Ao mesmo tempo, acho que aumentaram as questões identitárias, entender o feminismo como identidade.
As expectativas políticas foram reduzidas?
Acho que sim, não em nível social, mas em nível de responsabilidade individual daquilo que o feminismo implica. Não é tanto ser feminista, mas como fazer feminismo.
Então, há uma banalização do feminismo?
Não. Acho que existe o perigo de banalizar o feminismo; mas perceber isso e fazer uma análise nos prevenirá disso no futuro.
Algo banal é algo trivial. O que é feminismo para você?
Existe um corpo teórico que dá a isso quase a consideração de ciência, mas o feminismo é uma coisa que sempre norteou minha vida, um sentimento de injustiça. bell hooks também diz isso, que é o primeiro sentimento de opressão que você percebe na família, porque tanto a classe social quanto a raça você percebe quando entra em contato com pessoas fora de casa, mas dentro de casa o que você sente é a opressão patriarcal, a diferença entre meninas e meninos, entre homens e mulheres.
Você fala sobre o que notou quando chegou de Berlim, então houve alguns anos de mobilizações massivas. Você acha que agora o movimento feminista está enfraquecido?
No movimento feminista sempre vi pessoas com muita consciência. Agora o feminismo foi socializado e qualquer pessoa, mesmo que não faça parte do movimento feminista, se considera feminista e sua palavra vale tanto quanto a de quem já é militante há anos ou como a de quem acabou de começar a militar, mas faz isso de maneira séria. Existe o perigo de que, falando de feminismo ou a partir do feminismo, pessoas que não participam ou que não conhecem a história do movimento dos últimos trinta anos possam esvaziá-la de conteúdo. Por exemplo, uma das questões mais difíceis de entender é que a nova lei de garantias contra a violência sexual remove a categoria de abuso de ataques que foram historicamente considerados menores no direito espanhol. O crime de estupro não existe e, no entanto, dentro das mobilizações massivas, um dos lemas contra a agressão em Pamplona tem sido “não é abuso, é estupro”, quando o crime de estupro desapareceu em 1995 porque se referia à honra das mulheres e foi removido por esse motivo e porque não previa as agressões a homens. Em outras palavras, foi possível considerar as agressões sexuais às mulheres, em vez de crimes contra nossa honra, que feriam nosso ser social, como crimes contra nossa liberdade sexual, o que foi um passo importante em 1995, graças a mulheres como Adela Asúa, por exemplo. E, no entanto, isso não é levado em conta e toda aquela luta é banalizada quando usamos aquele slogan: estupro não existe, é agressão sexual.
Parece que estamos sempre fazendo coisas novas e nos esquecemos de toda essa genealogia e das mulheres que estão há anos na militância. Será que temos memória curta?
É normal ter memória curta levando em conta que o feminismo deu um passo quantitativo imenso, mas me parece perigoso que alguém possa falar sobre o que é o feminismo, o que o feminismo faz… Estou falando de um feminismo individual, que é o que realmente me parece que põe em perigo e banaliza o movimento feminista.
Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, e Patricia Botín, presidente do Banco Santander, agora dizem que são feministas. É uma banalização ou uma cooptação do feminismo, de um conceito e de uma luta que era pungente, para esvaziá-lo de conteúdo e fazer uma pequena reverência?
Sim, isso é banalizar, esvaziar de conteúdo. É verdade que para qualquer grupo social alcançar um maior número de pessoas é o objetivo, mas sem perder as bases políticas mínimas.
O feminismo deveria então ter uma mirada anticapitalista?
Esse discurso pode excluir certas pessoas. Mas, sem entrar no discurso, todas as medidas feministas beneficiam mais as mulheres em situação mais precária. Se a Câmara Municipal de Bilbao adquirir apartamentos para situações de emergência para mulheres em situação de violência, as mulheres que mais se beneficiarão com essa medida serão aquelas que não têm acesso ao aluguel. Daí a análise interseccional. Quanto mais aprofundamos o feminismo, mais vemos que ele se identifica com a luta de classes: falamos do movimento das residências, do movimento das trabalhadoras domésticas, porque elas assumiram a visão feminista e se organizaram.
Você escreve no livro sobre a língua basca. Estamos em Bilbao e a força que o movimento feminista tem aqui não tem em outros territórios. Essa análise que você faz do perigo da banalização e do individualismo pode ser aplicada aqui?
Existem duas questões. Refiro-me ao fato de a língua basca não ser um privilégio. A teoria dos privilégios explica que existem benefícios ou vantagens: por exemplo, aqueles que os homens têm sobre as mulheres apenas porque são homens, e o fato de uma pessoa falar basco não implica em nenhum benefício sobre uma pessoa que não fala, nem sequer aqui. E em relação à ativação do movimento feminista, parece-me que, tradicionalmente, por exemplo, em Bilbao, sempre houve uma atividade muito visível com várias lideranças femininas nos últimos trinta ou quarenta anos. Depois da dissolução do ETA, há partes dessa sociedade que o feminismo volta a iludir com a ideia revolucionária, no imaginário que chamo de simbólico; ou seja, a imagem de uma militante ativa. Ou que toda vez que há uma agressão, em vez de explicar, o que se faz é dizer que vamos nos recuperar de todos os ataques e com a reação patriarcal sabemos que eles vão nos atacar mais. A imagem de que estamos armadas como legítima defesa feminista não me parece adequada, porque essa agressão já ocorreu e a legítima defesa feminista serve para prevenir a agressão.
Você quer dizer o simbólico das imagens.
Sim, nos cartazes.
Você não concorda com a imagem mais belicista ou feroz?
Eu entendo, mas não acho que corresponda… porque nenhum desses agressores tem medo de nós, por mais imagens violentas que postamos. A questão é por que, se nos declaramos feministas, lemos livros feministas, não somos capazes de defender fortemente nossos direitos. Sempre se fala que o feminismo é um movimento pacífico, e é dessa forma estrategicamente conforme o momento em que agimos. Por exemplo, à noite, não se trata de defender nossos corpos, mas de sairmos vivas de qualquer situação. O slogan da manifestação das festas de Bilbao [“Tremam, bastardos!”] me pareceu muito agressivo, e, apesar disso, as pessoas que participaram não foram capazes de defender essa agressividade. Vê-se que não provocamos medo à sociedade, mesmo com slogans agressivos.
Temos que provocar medo?
Acho que não, mas se escolher esse caminho… Me parece mais estratégico não assustar porque para conseguir algo precisamos da colaboração dos homens.
Você fala sobre a reação patriarcal. Nesse tempo em que você começou a organizar as ideias para escrever o livro, você viu essa reação?
Mensurei isso em minhas pesquisas sobre “presumptitis” [presunções], cujo primeiro artigo publiquei na Pikara. Coletei cientificamente os crimes com vítimas no El País e no El Mundo, de 1996 a 2016, para ver qual diferença há quando as mulheres denunciam e quando os homens denunciam. Quando mulheres denunciam violência sexista, dentro do casal, fora do casal, ou agressões sexuais, nos dois principais jornais do país, que seriam os que melhor funcionam profissionalmente, a palavra “suposta” aparece duas vezes mais do que quando um homem denuncia, e é multiplicado por vinte quando as leis de igualdade são adotadas em 2004. Eu chamo isso de reação patriarcal. Eles nos dão um direito mínimo de nos defendermos da violência sistêmica e, em troca, qual é a reação? Minar nossa credibilidade social.
Em países como Colômbia e Argentina, direitos como o aborto estão aumentando, enquanto estão sendo perdidos em países como os Estados Unidos.
Faço esta leitura no quadro europeu. Quando eu morava em Berlim, eles me disseram que a violência de gênero prevista na lei era um problema no sul da Europa, que isso não acontecia na Alemanha. E uma vez que tenham assinado a Convenção de Istambul, tanto a Alemanha como a França têm que manter o controle das mulheres assassinadas no âmbito dos casais e vê-se que na Alemanha e na França eles têm mais do que o dobro do que na Espanha. Berria tem uma página web especial sobre violência sexista dentro do casal em País Basco e podemos verificar quantas mulheres foram assassinadas em Iparralde [País Basco Francês] e quantas em Hegoalde [País Basco Espanhol] e se calcularmos a população de cada um dos territórios, vemos que em Iparralde é três vezes mais do que aqui.
Sobre a situação das pessoas trans e o debate sobre a lei, você aponta no livro que o que ficou intacto foi a visibilidade dos homens.
É a única coisa que eu critico na lei trans, que ela não luta contra o androcentrismo, não luta contra o fato de que o referente comum continua sendo o homem. Quando fala sobre pessoas grávidas, não luta contra isso; por isso que proponho, em vez de pessoas grávidas, mulheres, que às vezes estão grávidas e outras não, e homens grávidos, que é o que quebra a nossa imaginação. Se você diz grávida a gente não vê, a gente não fala que homem pode engravidar.
E as pessoas não binárias?
Bom, falo de pessoas trans porque encontrei uma associação como a Naizen que já tem uma visão e uma proposta social. No País Basco não encontrei nenhuma associação de pessoas não binárias. Como jornalista, sempre recorro, ao invés das fontes pessoais, às fontes sociais, por isso participamos da sociedade por meio de entidades ou movimentos sociais, porque nossas demandas não são pessoais, mas afetam pessoas diferentes.
Que leitura você faz de todo esse enfrentamento e ataque às pessoas trans em decorrência do debate sobre a lei trans?
A forma como este debate é conduzido não é construtiva nem permite chegar a qualquer ponto de acordo. O Centro de Documentación de las Mujeres Maite Albiz tentou organizar algo nesse sentido. Também tentei procurar pontos de encontro. Nem a medicina, o transfeminismo ou a sexologia explicam a transexualidade. Ela é um fenômeno social que ainda temos que integrar socialmente.
Esse livro tem uma bibliografia muito interessante, é como uma enciclopédia: você cita várias autoras, faz um tour de teorias, de momentos. Nessa extensa revisão que você fez, há alguma autora que você descobriu ou redescobriu?
Não sabia que iria citar tanto o livro de Simone de Beauvoir. Também a bell hooks, que tem outros livros que não mencionei mas que, como professora, acho muito interessantes sobre ensino e pensamento crítico.
Entrevista de Maria Gorosarri concedida a Maria Ángeles Fernández publicada em Pikara online magazine em 16 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2022/11/la-transexualidad-no-la-explican-ni-la-medicina-ni-el-transfeminismo-ni-la-sexologia-es-un-fenomeno-social/
Tradução: Luiz Morando.
