Com o passar do tempo, veremos que uma parte do feminismo caiu numa espécie de “campanha de paranoia” com a questão da lei trans [na Espanha]. Algumas feministas, muitas com interesses espúrios, decidiram se insurgir contra a aprovação de uma lei que elas próprias haviam defendido um ano antes; uma lei que replica o que já existe e acontece há anos na maioria das Comunidades Autônomas e atinge, no melhor dos casos, 0,3% da população. Um grupo populacional vulnerável de acordo com todos os padrões de vulnerabilidade conhecidos. Mas… aquele 0,3 tem um poder fabuloso: mulheres apagadas, todo feminismo negado, meninos e meninas em perigo, sociedade à beira do descarrilamento, o mal apontando em qualquer esquina. A ameaça absoluta com o intuito de gerar um pânico moral do livro que, em momentos de crise e dores diversas, sempre funciona. Um dia, tenho certeza, alguém se arrependerá do apoio dado ao uso estratégico de embustes, ao uso consciente de mentiras para vencer uma guerra política e de poder, independentemente da imensa crueldade, ódio e desumanização desencadeada contra uma minoria vulnerável. (Sim, eu sei que parte da questão é negar que sejam vulneráveis, mas essa é justamente uma das partes mais terríveis da questão, essa própria negação, do que transformar aquela população em bode expiatório para outras questões que não são visibilizadas.) Foi gerada uma violência extrema on-line (e fora das redes) que busca humilhar, desumanizar e apresentar a mera existência dessas pessoas como um perigo. As mulheres trans são chamadas de “Manolo” com o único objetivo de humilhação, porque não merecem mais nada. Se elas não merecem nada além de humilhação, a próxima coisa é pensar que elas não merecem nada além de violência, porque, em última análise, você não vai contra essa lei, que nem conhece; você vai contra essas pessoas; direitos que foram cobrados por lei há quase 25 anos agora estão sendo negados. Não é verdade que elas sofrem agressões, dizem; os números são manipulados, é uma conspiração global a seu favor e se elas não querem sofrer agressões, que sejam normais. Tudo isso se traduz na vida real no aumento da violência contra elas, mas o uso de argumentos da extrema-direita, mentiras e embustes, contribui para introduzir o trumpismo onde ele deve ser combatido. Isso afetará as mulheres, o feminismo e também o PSOE [Partido Socialista Operário Espanhol], que se uniu na defesa do referido trumpismo, dilapidando assim seu papel de defensor dos direitos LGBT sem que isso vá reportar mais do que os aplausos do setor mais reacionário e minoritário do feminismo.
Algum dia alguém reconhecerá que não foi uma boa ideia transformar Judith Butler ou a teoria queer no que os evangélicos brasileiros fizeram quando perseguiram a filósofa em um aeroporto, agitando algumas cruzes e querendo queimá-la na fogueira, enquanto a chamavam de “bruxa”. Não é uma boa ideia porque essas fogueiras são as mesmas onde as feministas queimariam se alguém finalmente tivesse o poder de queimar Judith Butler. Muitas se tornaram aqueles evangélicos aterrorizados que identificam a filósofa com o próprio diabo. O “generismo queer” é a grande invenção para ajudar a incendiar certas correntes de pensamento; um suposto subtexto perverso e oculto que supera qualquer reivindicação de direitos trans, mas também qualquer coisa que não seja apreciada. O “generismo queer” é o Protocolo dos Sábios de Sião, e combatê-lo justifica tudo; até admiro e encorajo alguns senhores que em suas vidas leram um livro sobre feminismo, mas agora os escrevem e dão aulas. Um dia alguém se envergonhará de ter defendido na academia, por pura estratégia política, a mais descarada grosseria intelectual. Alguém vai se arrepender de não ter se dedicado mais a estabelecer debates intelectuais com a teoria queer – e vencê-los – do que queimar qualquer coisa.
Algum dia alguém vai se arrepender do apoio dado a essa extrema-direita global que inventou a chamada “ideologia de gênero” para combater o feminismo, uma estupidez reacionária da qual, alguns anos atrás, qualquer feminista sensata zombava. Para seus idealizadores, evangélicos de extrema-direita, a ideologia de gênero é a grande ameaça, comparável ao comunismo. A ideologia de gênero estimulou as campanhas de Bolsonaro, Orban, Putin, da direita polonesa, impediu a aprovação dos Acordos de Paz na Colômbia, serviu para pedir voto a favor da permanência da constituição pinochetista… e claro, é a linha fundamental de argumentação da extrema-direita mundial. Para acabar com as leis trans, alguém de um determinado setor do feminismo decidiu que era bom aderir a essa ideologia e que, portanto, deveria ser proscrita uma das ferramentas políticas e teóricas mais úteis que o feminismo teve, o conceito de gênero (hipertrofiado, na minha opinião, mas necessário). Em algum momento alguém terá que explicar por que algumas feministas acabaram do mesmo lado da ideologia mais reacionária que reina no mundo. O gênero não existe mais, voltemos à biologia, à natureza e, acima de tudo, à ciência. A ciência do sexo, que tanto fez pelo feminismo e por esclarecer o que são homens e mulheres! Defendamos agora que “o importante é ter clareza sobre a função reprodutiva que o bebê recém-nascido desempenhará no futuro”, frase literal de um livro elogiado por teóricas feministas, escrito por um homem que, ao menos quando escreve sobre o feminismo, é vergonhoso.
Acima de tudo, este setor decidiu que é bom falar por elas, as pessoas trans, e não falar com elas, nem as ler, nem as ouvir com interesse e seriedade, sob pena de serem colocadas em pé de igualdade intelectual. Tampouco lhes é permitido escolher como se chamar porque alguém, de fora, decidiu que usar “pessoas trans” é parte do problema, que esse nome as faz parecer inofensivas; então temos que chamá-las como quisermos: transgênero, transumanas, transexuais… não como elas decidiram se chamar, porque começa por reconhecer que os grupos sociais subalternos têm o direito de escolher como querem ser nomeados… e acaba tendo que usar o feminino nos discursos. A partir daí, argumenta-se que para discutir direitos trans é preciso ouvir especialistas que não são trans, que não falaram com nenhuma pessoa trans e que sentem uma animosidade óbvia em relação a elas. É o normal. Quando falarmos de aborto, escutemos os pró-vida e quando falarmos de famílias, vamos trazer o Fórum da Família, que tem muitos especialistas. Afinal, as pessoas LGB já tiveram que ouvir a opinião de Aquilino Polaino no Senado sobre se podíamos ou não nos casarmos. Alerta de spoiler: deu errado. É que a transexualidade afeta as mulheres, me dizem! Sim, e o casamento igualitário afeta a família e o aborto afeta os homens.
Sigamos esse caminho. Reivindiquemos a ciência oficial, os especialistas e a natureza que nos sexualiza, todos grandes aliados de sempre do feminismo. E, já definidas, vamos com tudo: Soros, os judeus, a ONU, a União Europeia e as agências internacionais, toda essa maldade internacional conspirando para que as sociedades ocidentais assumam a perversa agenda trans embutida na Agenda 2030 de forma furtiva, após o que a grama não crescerá novamente. Agora é possível ler, no mesmo post, que as associações LGBT são financiadas por Trump, por Soros, pela ONU, pela extrema-direita e pela esquerda pós-moderna. Acima de tudo, não esqueçamos as indústrias farmacêuticas, que são tão úteis para fazer negócios com transexuais quanto para fazer negócios com embriões e fetos provenientes de abortos; que querem dar hormônios a todo mundo e por isso, presume-se, estão por detrás de uma lei que, precisamente, pretende tornar a hormonização não obrigatória. Minha opinião sobre as farmacêuticas não mudou com a questão trans, acho que deveriam ser nacionalizadas.
Insultos e negações têm sido impostos em vez de conversa; quem discorda é tratado como inimigo mortal; qualquer possível aliança entre mulheres tem sido dinamitada conscientemente em um momento em que os direitos fundamentais das mulheres correm sério risco pelo avanço da extrema-direita e não para nenhuma lei trans (repito, estamos com essas leis há vinte anos). Impôs-se a estratégia de tratar quem não concorda em tudo como o mal que deve ser apagado da face da terra. E enquanto isso, o monstro que quer nos apagar, literalmente, pode crescer. Os discursos desse monstro são usados, suponho que estrategicamente, mas, enquanto isso, o capital político acumulado pelo feminismo nos últimos anos nos escapa por entre os dedos.
E nega-se que por trás de tudo, além dos interesses políticos gritantes e muito evidentes das pessoas que comandaram esta operação, haja, para a maioria e como sempre, o medo. Medo de que as fronteiras de gênero (ou sexo?) sejam diluídas (esse medo terrível sempre existiu, e sempre produziu monstros), de que algo ou alguém ocupe nosso espaço, que já é precário. Medo do desconhecido, da dúvida, medo do que não é bem compreendido, medo da perda do privilégio epistêmico, medo de uma sociedade que só entendemos pela metade, medo de uma geração que nos dá pouca atenção, medo de mulheres jovens que não reconhecem nosso ensino e que enunciam um feminismo que às vezes nos é difícil reconhecer. Todos eles medos humanos que são tradicionalmente combatidos culpando os outros por tudo. E, finalmente, procurando destruir os outros. É que, até agora, as pessoas de esquerda estavam trabalhando para nos vacinar contra esses medos. É como se tivessem sido quebradas as barreiras que nos separam da barbárie.
De minha parte, sou uma feminista radical mais velha com alguns preconceitos produto de um mundo que era outro anteontem; tenho dúvidas, mas também convicções firmes. Tenho dúvidas sobre questões complexas que têm a ver com a conceituação de sexo e gênero (sim, também sabemos que isso passou de um tema central do feminismo para uma coisa completamente banal que você nem precisa pensar porque basta olhar os órgãos genitais). Como feminista radical tenho muitas diferenças com a teoria queer, diferenças intelectuais que me estimulam a debater, ler e conversar. Mas, acima de tudo, as demandas das pessoas trans não me preocupam. Apoio qualquer medida que torne a vida de outras pessoas melhor e mais habitável. Acredito que há questões que são teoricamente muito abstratas e outras que são experienciais e irredutíveis, das quais é difícil abordar totalmente de fora. Respeito essas experiências, escuto, aprendo, às vezes discuto e ainda tenho dúvidas. Mas minhas dúvidas não são mais importantes que suas vidas. Além disso, tenho algumas certezas bem estabelecidas: as leis têm que permitir que as pessoas vivam melhor, as sociedades que acolhem e defendem os direitos das minorias são sempre sociedades melhores para todos; se há questões que a extrema-direita global defende até a morte, são essas pelas quais luto até a morte. As vidas das pessoas trans são tão valiosas quanto qualquer vida e elas mesmas devem ser seus sujeitos. Reconhecer seus direitos só prejudica a extrema-direita global, mas certamente não o feminismo, cujos inimigos são outros.
Em todo caso, quando a lei for aprovada, as coisas serão mais fáceis para elas, mas não muito diferentes. Porque a lei não regula nada do que dizem que regula, nem hormônios, nem operações… tudo isso já está regulamentado há anos e vem acontecendo sem nenhum problema. O que vai ser aprovado já está refletido em muitas leis regionais e na lei de 2007, e os tribunais também o vêm aplicando – pela via dos fatos –, só que agora o caminho é muito mais incômodo, lento e humilhante. A verdade é que a lei que se pretende aprovar apenas facilita o que já existe, nomeia-o de maneira melhor, confere a essas pessoas mais autonomia sobre si mesmas e mais proteção.
Essa onda de pânico e irracionalidade vai passar e chegará o dia em que haverá pessoas que se arrependerão de terem ficado caladas. Eu não queria que a mesma coisa acontecesse comigo.
Depoimento de Beatriz Gimeno publicado em Pikara online magazine em 30 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2022/11/derechos-trans-y-feminismo-algun-feminismo/
Tradução: Luiz Morando
