Racismo, branquitude e privilégio branco

Frantz Fanon disse que na sociedade existem duas zonas divididas por uma linha
imaginária: uma superior, habitada por populações brancas reconhecidas por sua
humanidade, chamada zona do ser, e uma inferior, habitada por povos racializados
desumanizados, chamada zona do não-ser.
Na zona do ser, o outro oprimido pode sofrer opressão de classe, gênero, orientação ou
identidade sexual etc., mas nunca opressão racial porque sua humanidade está
reconhecida nele. Na zona do não-ser, em troca, o outro oprimido além de sofrer
opressão de classe, gênero, orientação ou identidade sexual etc., sofre opressão racial
devido ao fato de sua humanidade lhe ser negada.
Isso significa que a relação entre o eu opressor – que é o mesmo em ambas as zonas e é
representado pelo poder branco, patriarcal, capitalista e heterossexual – é muito
diferente dependendo de você estar acima ou abaixo da linha imaginária, pois, enquanto
na zona do ser, produz-se uma dialética entre o eu opressor e o outro oprimido, que os
faz reconhecer os direitos sociais, civis e trabalhistas, na zona do não-ser essa dialética
desaparece.
Essa teoria fanoniana do racismo está diretamente ligada ao conceito de branquitude e
ao chamado “privilégio branco”. Na década de 1930, W. E. B. Du Bois falou de como
as pessoas identificadas como brancas se beneficiaram psicológica e economicamente
do sistema segregacionista americano. Vários anos depois, em 1975, inspirado por Du
Bois e pelo movimento pelos direitos civis, Theodore W. Allen publicou The Invention
of the White Race, obra na qual cunhou o conceito de “privilégio branco” e na qual
comparou a situação de trabalhadores brancos com a dos trabalhadores negros.
Mas foi a partir de 1989 que o termo se popularizou por meio do trabalho da feminista
Peggy McIntosh, cujo artigo “White Privilege: Unpacking the Invisible Backpack”
começou a ser amplamente citado e difundido entre os movimentos feministas e
antirracistas nos Estados Unidos. Em seu artigo, McIntosh argumenta que, assim como
os homens gozam de um privilégio masculino, ela goza de um privilégio branco
baseado em uma série de vantagens não conquistadas, mas adquiridas per se, no quadro
de um sistema de poder e dominação que privilegia a branquitude
Mas o que exatamente é privilégio branco?
Voltando ao esquema proposto por Fanon com sua teoria da zona do ser e da zona do
não-ser, podemos afirmar que o privilégio branco é a vantagem que as pessoas
universalmente reconhecidas como humanas (brancas ou lidas como brancas) obtêm no
acesso a direitos, recursos e benefícios, em comparação com pessoas desumanizadas
(não brancas), mesmo nos casos em que existam condições sociais, políticas,
econômicas, culturais, de gênero ou de identificação sexual iguais.
Habitar a zona do ser permite gozar do privilégio racial e “dialogar” com o poder como
ser humano reconhecido como tal, enquanto habitar a zona do não-ser implica sofrer
opressão racial e impede a possibilidade de diálogo, pois aqui esse direito colapsa
enquanto uma pessoa não reconhecida em sua humanidade. E ambas as questões têm
implicações determinantes em nosso dia a dia e em nossas possibilidades futuras.

Como Reni Eddo-Lodge afirma acertadamente em seu livro Why I Don’t Talk to White
People About Racism, “[…] trajetória de vida. E você provavelmente nem percebeu
isso.” Eddo-Lodge coloca como exemplos de questões de privilégio branco que vão
desde a “ausência de violência contra seus ancestrais” até “a ausência de uma vida de
marginalização e alienação sutil que o exclui da narrativa do ser humano”.
A construção do ser humano universal
Para fundamentar o conceito em um exemplo mais concreto, vamos pensar na guerra na
Ucrânia. Primeiro vimos como foi dada prioridade à evacuação da população civil
branca ucraniana, deixando negros, indianos, árabes e ciganos nas filas na fronteira com
a Polônia; depois, assistimos à forma como a União Europeia aprovou por unanimidade
e expressamente uma medida histórica que permitia a entrada ilimitada de refugiados
ucranianos na Europa, que incluía o direito de se estabelecer em qualquer um dos seus
estados-membros e ter uma casa, procurar emprego e contar com assistência médica.
Um tratamento muito diferente daquele que historicamente tem sido dado aos povos
sírio, líbio, afegão, nigeriano ou palestino, deixados à mercê da fome e do frio nos mal
nomeados campos de refugiados, ou simplesmente deixados para morrer no
Mediterrâneo. O que torna uma situação diferente da outra? Seu grau de humanização
ou desumanização pela narrativa da Europa Ocidental. Para a história, permanecerão os
comentários racistas de comentaristas e repórteres de televisão que reafirmaram
descaradamente a diferença entre os ucranianos (“pessoas como nós”, “crianças loiras e
de olhos azuis”) e os de outros povos que também foram forçados a fugir da guerra.
Outro exemplo de privilégio branco é a mobilização de recursos institucionais, policiais
e de comunicação que são acionados quando a vítima de um crime é uma pessoa branca
versus o pouco interesse ou solidariedade que é despertado quando a vítima é
racializada. Foi o que aconteceu com o caso das mulheres marroquinas catadoras de
morangos em Huelva, vítimas de estupro e abuso sexual por parte de seus patrões, cuja
história passou despercebida pelos jornais e telejornais, e de cuja manifestação de apoio
organizada pelo movimento antirracista de Madri participaram, basicamente, os
militantes antirracistas da cidade (com a presença ocasional de um aliado branco).
Outros exemplos de privilégio branco são a presença majoritária de brancos em cargos
gerenciais, a diferença salarial entre brancos e racializados (que no caso de mulheres
racializadas aumenta), o acesso a espaços de lazer de qualquer tipo em qualquer bairro,
andar na rua sem ser vítima de discriminação racial por parte da polícia, andar por um
shopping center ou supermercado sem ser perseguido por um segurança que está
convencido de que você entrou para roubar, viajar para qualquer país sem medo de ser
parado em aeroportos e ter uma história, cultura e visão de mundo que fazem parte da
história universal, cultura universal e visão de mundo universal e, portanto, não se
tentou aniquilar, inferiorizar ou ridicularizar ao longo dos séculos.
Para que existam populações privilegiadas, deve haver uma contrapartida, um outro
inferiorizado, que legitima os privilégios das primeiras. E aqui a desumanização de que
fala Fanon e a construção do branco como universal desempenham um papel
fundamental.
A branquitude não é uma cor. A branquitude é uma construção social, uma ideologia
que surgiu em 1492 com o relato interessado da Modernidade, que estabeleceu que as
populações não brancas eram subumanas (pessoas indígenas) ou não humanas (pessoas
negras), e que, portanto, poderiam ser civilizadas – explorar para obter benefícios
econômicos, sociais e políticos. Essa narrativa foi cimentada ao longo da história pelo
colonialismo e pela colonialidade do poder, e perpetuada pelo capitalismo com sua
divisão étnico-racial do trabalho.

A branquitude é, portanto, um fenômeno histórico e ideológico, um sistema político que
marca racialmente os povos não ocidentais como inferiores, por meio de marcadores
raciais como cor da pele, etnia, religião, língua ou cultura (colocando-os em uma zona
de não-ser, uma zona desumanizada sem direitos), e que estabelece o branco ocidental-
europeu como medida para o humano universal (zona do ser, zona humanizada de
direitos) para manter a supremacia e os privilégios políticos, os direitos econômicos e
sociais das populações brancas, isto é, com o objetivo de manter o privilégio branco.
Essa ideologia da branquitude e seu braço armado, o privilégio branco, são a base sobre
a qual se constrói o racismo estrutural, entendido como aquela estrutura de dominação
global baseada em uma hierarquia de superioridade versus inferioridade em relação a
diferentes marcadores raciais.
Refletir e atuar
Uma das maiores críticas feitas ao conceito de privilégio branco tem a ver com o
desconhecimento do que ele significa e implica. Talvez as palavras que melhor reflitam
essa ignorância sejam as ditas em 2020 pelo político de esquerda francês, Jean-Luc
Mélenchon, quando afirmou que “as três ou quatro pessoas que pensam que [o
privilégio branco] existe nunca viram um homem pobre branco”.
É aí que reside a grande confusão sobre o assunto. O conceito de privilégio branco não
faz alusão a uma vida fácil, isenta de dificuldades ou opressões, mas define a maneira
pela qual a branquitude não só não jogará contra, mas atuará a favor de tudo relacionado
ao acesso a direitos, serviços e benefícios, seja acessando um cargo de juiz, obtendo
uma bolsa de estudos, tendo direito ao voto ou andando na rua sem medo de ser parado
pela polícia.
Se nós, pessoas racializadas, às vezes “gozamos” do privilégio branco quando, em
certos contextos, nos é dado o benefício da dúvida e somos lidos como brancos, ou
pseudobrancos, com maior razão deveriam refletir sobre esse privilégio aquelas pessoas
– especialmente nossas aliadas – que constantemente se beneficiam desse privilégio.
Na configuração das relações de poder não intervêm apenas o patriarcado (gênero) e o
capitalismo (classe). Como foi indicado, o racismo, através da ideologia da branquitude
e do privilégio branco, é uma ferramenta estruturante do atual sistema-mundo e se não
refletirmos sobre suas consequências, nem as incorporar às nossas lutas, não estaremos
trabalhando por um mundo melhor para todos.

Artigo de Paula Guerra Cáceres publicado em Pikara online magazine em 15 de junho
de 2022. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2022/06/racismo-
blanquitud-y-privilegio-blanco/

Tradução: Luiz Morando.

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