Tirar o aborto do armário, colocá-lo na rede

“Alguém precisa de doces por três semanas.”

A primeira linha em um chat para aliviar a pressão da válvula interna, o início da trajetória de um aborto em um dos países mais restritivos da América Latina e do Caribe. Com uma mensagem codificada, Berta Padilla (nome fictício) muitas vezes serviu de ponte entre as mulheres que buscam a interrupção da gravidez e a rede feminista que as ajuda. É uma rede clandestina, porque em Honduras é proibido o acesso ao aborto em todas as suas formas, assim como à anticoncepção de emergência. Padilla encontrou o contato de uma pessoa que fazia parte da rede por meio de uma instituição que trabalha pelos direitos da mulher no país. “Eu era um rosto público, nas minhas redes sociais defendia o aborto gratuito. Começaram a me escrever para saber se eu tinha acesso ao medicamento e eu as encaminhava para a rede”, explica.

Um ultrassom pode ser solicitado por correio ou telefone – por meio de aplicativos de mensagens criptografadas e seguras – para verificar a hora e o tipo de gravidez. A rede fornece pílulas abortivas (misoprostol e mifepristone) em troca de uma quantia em dinheiro, embora descontos ou remédios gratuitos também sejam oferecidos, dependendo da condição da mulher. A partir daí, o processo é explicado a elas e, caso solicitem, são acompanhados por telefone ou pessoalmente.

“O remédio é trazido de outros países onde o aborto é legal. Damos instruções sobre como tomá-lo e combiná-lo com analgésicos, antieméticos e antidiarreicos. Recomendamos quatro comprimidos de misoprostol sob a língua. Se forem colocados na vagina e precisarem de atendimento médico, podem ser encontrados e elas podem ser processadas ​​por aborto”, explica a ativista. Ela própria engravidou e interrompeu a gravidez em duas ocasiões, ambas com seis semanas de gestação. Ela conseguiu o medicamento (Cytotec, da Pfizer) pela rede e em uma pequena farmácia que fez vista grossa.

Não há números exatos sobre quantas mulheres e meninas fazem abortos clandestinos em Honduras, mas algumas organizações estimam que mais de 50.000 são realizados a cada ano. A Organização Mundial da Saúde e o Instituto Guttmacher relatam que três em cada quatro abortos realizados na América Latina são inseguros e a cada ano cerca de 760.000 mulheres recebem tratamento para complicações derivadas disso. A América Latina é uma das regiões do mundo com maiores restrições legais, apesar do reconhecimento desse problema de saúde pública.

Será Lei em todo o território – diz a maré verde que colore toda a região. Mas, enquanto isso, e face ao acesso ampliado aos direitos ao longo do tempo, a ajuda ainda é necessária em paralelo. A deputada argentina da Frente de Todos, Daniela Villar, disse isso no debate pela aprovação do projeto apresentado pelo Governo de Alberto Fernández: “Mulheres abortam na ausência do Estado e essa ausência é suprida pelas redes feministas.”

Abortar à margem do sistema

Nesse vazio está a teia de aranha que essas organizações vêm tecendo há anos. Mais de 22 grupos fazem parte da Rede Feminista Latino-Americana e Caribenha de Acompanhamento e Aborto. Existem muitas outras.

Maria José Tirao é parteira do Hospital José Ingenieros de La Plata e participante da Rede de Profissionais da Saúde pelo Direito de Decidir. Mais de 2.000 profissionais fazem “ativismo dentro do sistema de saúde”. Realizam interrupções legais com a bandeira da saúde causal, entendida a partir de uma concepção biopsicossocial: “Se eu não tenho dinheiro para poder resolver uma gestação, se não tenho trabalho ou uma gestação simplesmente não se enquadra no meu projeto de vida, isso seria causa de interrupção legal”.

Aquelas que não desejam ou não podem acessar o ambiente hospitalar são acompanhadas por socorristas. Estas fornecem informações seguindo os protocolos da OMS e acompanham mulheres e grávidas com práticas seguras. O vínculo de cooperação entre as duas redes aumentou devido ao isolamento decorrente da pandemia. “Tivemos que absorver a demanda de primeiros socorros e aí cresceu muito o volume de mulheres que abortaram fora do sistema de saúde. Fizemos essas consultas virem até nós. Muitas resolveram por telefone, e a pessoa veio retirar a medicação e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido, mas aquelas que estavam isoladas ou viviam situações complexas, como interromper a gravidez vivendo no mesmo local com quem as violentava, tiveram que ser consideradas. Aí, o trabalho das socorristas era estar em comunicação com a pessoa naquele momento”, diz Maria José Tirao.

Soma-se à dificuldade de acesso o aumento de casos trazidos pela pandemia em muitos países. Vanessa Jiménez acredita que o número de abortos quadruplicou: “Uma coisa que percebi é que muitas gestações foram planejadas e elas decidiram interrompê-las devido à situação atual”. Do norte do México, em Nuevo León, ela trabalha voluntariamente com 19 outras mulheres da Necessito Abortar. Propõem-se “manter um diálogo seguro, em que escutem os seus medos e dúvidas, proporcionem uma escuta ativa, prestem informações jurídicas e científicas”. A legislação mexicana criou um campo de difícil acesso com fundamentos legais e ilegais segundo o Estado. Soma-se a isso o estigma social: “Pesa sobre elas a ideia de que mesmo tendo acesso ao que é certo, é errado exercê-lo. Procuramos transformar a experiência e, ao invés de ser vivenciado como um crime, que elas vivam isso como um direito”. Parte do trabalho é enfrentar o Estado. Dizer-lhe: “Não estamos erradas, são vocês que violaram os direitos das mulheres”.

Ao contrário de outros países, no México o misoprostol está disponível nas farmácias, embora o acesso dependa muito de quem esteja atrás do balcão. Compartilhar informações sobre o aborto também não é crime e, mesmo assim, a clandestinidade é uma realidade.

Para Vanessa Jiménez, o acompanhamento dura o tempo que a mulher precisa. Seja presencial, seja por telefone ou até na própria casa: “Tem meninas que não tinham outro lugar. São processos que eu não imaginava antes porque também tive muito estigma. Acho que a experiência me fez entender que o aborto nunca é sobre mim, mas sobre a vida de quem o vive”. No meio da pandemia, uma menina de 15 anos e sua mãe as procuraram após receber a recusa de dois hospitais. “A mãe, a irmã e a menina vieram; pediram comida e ela estava bem. Foi mais um acompanhamento para a mãe, ela chorava… Se eu aprendi alguma coisa, é que o aborto não é só um direito de muitas mulheres, mas também um ato de justiça, de encerramento. Simboliza também amor”, afirma animada.

O isolamento trouxe à tona outra realidade: o aborto feito em casa. Las Parceras de Colombia é a primeira rede pública de apoio do país. Elas estão empenhadas em descriminalizar o aborto, “tirando-o do armário”, segundo Eliana Riaño. Seu foco é o repasse de informações constantes. Las Parceras não fornecem medicamentos – exige-se receita médica –, mas ajudam quem não tem acesso por meio de alianças com o setor de saúde. “A clandestinidade tem sido a saída para muitas, apenas 1% das mulheres que abortam na Colômbia o fazem na legalidade”, diz ela.

O desafio dessas redes é atingir o maior número de mulheres. Para isso, é necessário ter acesso à internet ou a uma rede telefônica, e na Colômbia tudo é complicado nas regiões rurais ou nos acompanhamentos nas línguas locais. Eliana Riaño denuncia que “o rosto do aborto inseguro é o rosto de mulheres jovens, indígenas, camponesas, negras, pobres… Não são mulheres de classe alta. Por isso, a luta pelo aborto é uma luta de classes, para dar conta também dos privilégios que algumas temos sobre outras”.

A parceria acerta o alvo. Ela é apoiada por uma colega do Equador, Veronica Vera: “Tudo vai depender do recurso econômico, da classe que passa por eles. Uma porcentagem muito pequena é feita por meios legais e apenas a classe média ou alta tem acesso ao aborto seguro em hospitais.” Ela faz parte de Las Comadres. Elas trabalham em um país onde existem três causas de aborto legal, “um dos protocolos mais progressistas da região no papel”, mas não na prática: no Equador, a interrupção é considerada crime. Ela reclama que não há informações claras: “Os médicos não sabem que o aborto é um direito, e o acesso depende de suas crenças ou das informações de que dispõem”.

Las Comadres trabalham nesta lacuna desde 2014: “Percebemos que era necessário dar um passo adiante, queríamos nos ver e nos dar informações, então o encontro do grupo é a forma de nos acompanharmos”. Diante da criminalização, o rosto: “Nossa aposta é pelo encontro, para tirar o aborto do ilegal e do clandestino; estar antes, durante e depois de todo o processo”. Desde março tiveram que se reinventar por meio de ligações, mas esperam poder voltar em breve ao encontro: “Para nós é o que dá a possibilidade de descriminalizar socialmente o aborto e constatar que é uma realidade”.

Mostre seu corpo, rosto e também dê as mãos

A integrante de Las Comadres acredita que acompanhar o aborto é também um compromisso com a autonomia: “Uma mulher que decide fazer um aborto – apesar de um contexto tão complexo como o isolamento, por exemplo, e ainda determinada – luta por si mesma. E temos que continuar aí, porque o nosso objetivo é tornar essa autonomia possível”.

Retire o tabu do armário e coloque-o à luz do dia. “Por isso escolhemos a visibilidade”, conclui Vanessa Jiménez, “para lembrar-lhes que não estão erradas, mas que foi o Estado quem falhou e para percebermos nossa capacidade de mudar o contexto”.

Acompanhar também é desaprender. Eliana Riaño admite: “Todas nós temos preconceitos. Antes, por exemplo, eu pensava que o aborto era apenas a última opção. Acompanhar para mim significou mudar muitas coisas na minha percepção do assunto. Isso me ensinou os limites que o Estado, as leis e a medicina hegemônica ocidental impõem a nós. Acompanhar é quebrar esses limites também. Estar com elas nos faz pensar em mais ferramentas, em como continuamos avançando”. É um aprendizado transnacional na luta para acompanhar umas às outras, dando respostas mútuas para se salvar das lacunas do sistema. Por isso, Eliana acredita que a teia deve crescer: “Continuar nos enredando para nos protegermos e coletivizarmos esse saber que deve ser de todas”.

Reportagem de Raquel Rero publicado em Pikara online magazine, em 30 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2020/12/sacar-aborto-del-armario-ponerlo-la-red/.

Tradução: Luiz Morando.

A aprovação do direito ao aborto na Argentina impulsiona a luta em toda a região. As redes feministas na América Latina compensam a ausência do Estado nos processos de interrupção da gravidez. A falta de leis de proteção não impede os abortos, e elas “se enredam” para garantir segurança e amparo, para dizer ao sistema: “Não estamos sozinhas”.

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