“A rua mais difícil nos apoia,
as que põem o corpo contra o despejo,
as que se endurecem sem perder a ternura”
(Tribade)
Na noite em que terminei a série Heartstopper, postei alguns stories no Instagram em que dizia: “Hoje não quero ser uma anticapitalista que faz estudos culturais, hoje sou uma rainha curtindo a história de amor de pessoas muito fofas. Então vamos refletir criticamente e nos perguntar por que todas as histórias contadas do nosso ponto de vista são pagas; no entanto, hoje estamos gulosos.” Bem, faz muito tempo que a fofura me impediu de fazer política; então, é hora de encarar a adaptação de Heartstopper da Netflix como um texto cultural e, portanto, ideológico, para nos perguntar qual tipo de narrativas queer esperançosas merece a alegria de lutar.
Começarei reconhecendo que sim, também chorei e me emocionei ao ver uma história de amor adolescente LGBTI tão terna e longe dos carrosséis de violência a que estamos acostumadas – trans, bichas, bi e sapas – na ficção. É inegável a importância que tem uma representação bonita e esperançosa para os/as jovens LGBTI poderem se reconhecer em histórias que terminam bem, em que o personagem estranho com que você se identifica não acaba sozinho, no melhor dos casos, ou morto, no pior deles. Eu também estremeci com partes iguais de alegria e lágrimas na cena em que Nick (Kit Connor) sai do armário para sua mãe (Olivia Colman) e recebe nada além de apoio e compreensão. Muitas amigas e colegas bissexuais sentiram que essa série deu às pessoas bissexuais uma das melhores representações possíveis de sua realidade. A personagem Elle (Yasmin Finney) narra uma vida trans e racializada em que transição e não branquitude são meramente anedóticas, e em que os afetos e a amizade perpassam toda a narrativa. O senhor Ajayi (Fisayo Akinade) nos mostra a importância dos adultos LGBTI visíveis nas salas de aula, e o amor não correspondido de Imogen (Rhea Norwood) por Nick não é resolvido com ressentimento competitivo tingido de heterossexismo. Não há dúvida de que as coisas mudaram, e só posso me alegrar com isso. O escritor e professor Ramon Martínez disse que em seu instituto todos os alunos estavam “bisbilhotando” Heartstopper, inclusive aqueles que se identificavam como homens cishetero. Nesse sentido, apesar de todas as reflexões críticas que estão por vir, Heartstopper alcançou uma justiça simbólica inédita: a de que os jovens heterossexuais, mais chantageados pela masculinidade hegemônica, não precisam esconder que se emocionaram com a história de duas bichas. Passar de surra no recreio a fofoca é, no mínimo, e como diz o meme, uma vitória do coletivo.
Não obstante, é inevitável apontar que a ternura no caso de Heartstopper parece vir de mãos dadas com uma profunda dessexualização dos prazeres não heteronormativos. A primeira coisa que um colega lutador me disse depois de ver a série foi que ela estava permeada de um puritanismo sexual que não encontramos em histórias adolescentes normativas. Estou ciente de que não vou encontrar muitos colegas nesta crítica, já que grande parte dos discursos feministas e de esquerda hoje está impregnada de uma narrativa em torno da inocência, da tutela e dos perigos da sexualidade nas mulheres. Isso faz com que qualquer demonstração de prazer que transcenda o Disney Kiss seja observada com suspeita de corrupção. Estou criticamente ciente de que vivemos com uma pornificação da cultura que sexualiza as crianças cada vez mais rapidamente, e que isso, por mais que acompanhemos sua agência, não é inocente em uma sociedade capitalista e heteropatriarcal. Também estou ciente de que a sexualidade queer tem sido historicamente monitorada, pervertida e oposta aos valores familiares. Nesse cenário, é consistente que uma história de amor adolescente LGBTI que não quer ser acusada de corrupção moral mostre seus personagens de uma pureza tão reacionária quanto anacrônica. A realidade é, mais ou menos, que jovens gays de 16 anos, como qualquer jovem de 16 anos de hoje, exploram seus desejos e se entregam a prazeres de todos os tipos. Portanto, a representação erótica de Heartstopper, longe de ser um reflexo de vidas queer reais, opera como um mecanismo disciplinar próximo ao que Lisa Duggan chamou de homonormatividade: a assimilação de identidades e prazeres dissidentes em quadros heteronormativos do “respeitável” na cultura dominante.
Nessa mesma linha, Heartstopper apresenta uma falsa dicotomia, em que a ternura e a esperança só podem ser representadas através da despolitização da vida queer. Embora tenha aventado que a ausência de um imaginário violento torna essa série um exercício de catarse para as gerações passadas e de conceber outros futuros possíveis para as gerações mais jovens, pessoalmente acredito que é possível ser mais ambicioso. Porque sim, os pequeninos trans e racializados que virem a Elle vão ter uma referência que abre a felicidade como possibilidade, e as pequenas bichas e bis que virem o Nick gritando para o mar que ama Charlie e abraçando a mãe vão sentir muito menos medo quando se trata de se construir e se expressar como quiserem. No entanto, isso não muda a situação estrutural do capitalismo: a família é uma instituição disciplinadora e privatizadora do cuidado baseada em uma violenta dependência econômica; a supremacia branca e seu aparato repressivo desvalorizam e relegam vidas racializadas à margem dos enlutados; as pessoas que confrontam normas de gênero sofrem rejeição sistêmica na esfera pública. O que eu gostaria de propor é que não há necessidade de esconder as relações sociais de opressão com as quais convivemos para contar histórias felizes. De fato, sem querer romantizar, muitas vezes os momentos mais felizes e ternos que as pessoas queer vivem ocorrem dentro das redes e tecidos comunitários que são tanto consequência dessa mesma violência, como condição da possibilidade de deixá-la para trás. Embora este texto agrade a um público certamente diferente do de Heartstopper, o romance Stone Butch Blues, de Leslie Feinberg, está imbuído de uma esperança radical, mostrando passagens repletas de amor, resistência coletiva e ternura, que convivem com episódios realmente duros de violência e espoliação. Acho que podemos aprender com este romance quando se trata de construir novas histórias de amor LGBTI para fortalecer sem perder a ternura.
Por fim, pode-se dizer que a produção cultural queer deve escolher de que lado da luta de classes se encontra. Peter Drucker argumenta que as crianças queer da classe trabalhadora raramente podem se ver refletidas nas histórias que consomem, e esse é certamente o caso de Heartstopper. Da mesma forma, devemos nos perguntar por que, de forma suspeita, todas as narrativas contadas do ponto de vista de pessoas queer, e portanto longe de estereótipos desumanizantes, são pagas atualmente. Nenhuma pessoa, e em particular nenhuma pessoa proletarizada, com preconceitos homofóbicos ou transfóbicos, vai gastar dinheiro acessando narrativas que, talvez, possam fazer com que mudem de ideia. O desejo de transformação social requer a coragem de espalhar histórias LGBTI em primeira pessoa muito além de um nicho de mercado. No mês de junho, Mês do Orgulho LGBTI, lembremos a coragem de um grupo de invertidos despossuídos contra a chantagem de um gueto que só lhes permitia existir enquanto consumiam. Em sua homenagem, peçamos uma cultura LGBTI que nos convide a sermos felizes sem termos que pagar por isso, que leve em conta nossas genealogias coletivas de resistência e que não apague nossos prazeres perversos. Sem dúvida, Heartstopper abre um caminho de esperança, mas é apenas um primeiro passo em tudo o que a cultura pode transformar. Sejamos realistas, politizemos a ternura.
Artigo de Ira T publicado em Pikara online magazine em 8 de junho de 2022. Disponível em: https://www.pikaramagazine.com/2022/06/heartstopper-entre-la-esperanza-y-la-asimilacion/
Tradução: Luiz Morando
