Começa com a morte, em 22 de junho de 1969, de um ícone, uma atriz e cantora com um destino tão trágico que se tornou uma das divas favoritas dos gays, e também porque foi ela quem cantou Over the Rainbow: Judy Garland. Seis dias depois, 28 de junho, seu cortejo fúnebre atravessa Nova York em meio a multidões chorosas, incluindo, é claro, numerosos/as homossexuais. A lenda, durante longo tempo, quis que isso começasse assim, mas as lendas, que podem ser bem sedutoras, não refletem a realidade…
Como sabemos hoje, isso foi mais do que uma coincidência: “Acho que a morte de Judy Garland foi simplesmente a gota d’água que fez derramar o copo”, dirá mais tarde Sylvia Rivera, drag queen latina e ativista trans que participou do funeral antes de se reunir no lugar onde tudo verdadeiramente se iniciou naquela noite: no Stonewall Inn, um bar um pouco acabado que pertencia à máfia, situado no número 51-53 da Christopher Street, no coração do Greenwich Village. No seu interior, duas pequenas salas contínuas, onde se amontoa uma pequena multidão de jovens gays sem um centavo, recém-chegados de suas cidades opressoras, de travestis negras e latinas, de trans, algumas lésbicas também. Para todas essas/es marginalizadas/os do sonho americano WASP, frequentemente rejeitadas/dos por outros bares homossexuais da cidade, o Stonewall é um tipo de arca de Noé queer. É a elas e eles que devemos o que está para acontecer e que mudará nossas vidas.
A noite avança, passa da meia-noite. As pessoas bebem, dançam, se beijam, todas essas coisas proibidas fora dessas paredes para aquelas e aqueles que ainda não são chamadas/os LGBT. A polícia entra no bar por uma dessas escadas que lhe é tão familiar. Verificações de identidade. Controlam se as/os clientes respeitam a lei que proíbe usar mais de duas peças de roupa que não correspondam ao seu suposto gênero. Aquelas e aqueles que violam a lei são empurrados para a viatura. Isso é quase uma rotina para os policiais. E é aí que tudo sai dos eixos. Algumas dezenas de pessoas se reúnem na rua diante do Stonewall – gays, lésbicas, drag queens, trans, que protestam contra o que é feito a seus/suas amigos/as. Pouco a pouco, a multidão aumenta. Empurrada à força para dentro de uma viatura, uma lésbica se debate, escapa e grita: “Pessoal, por que vocês não fazem nada?”. É como um sinal. Um objeto é jogado em direção aos policiais, depois uma garrafa, outras, sob gritos.
Os policiais se entrincheiram no bar para tentar conter a raiva que estoura enquanto esperam reforço. Fora, o barulho do tumulto espalhou-se; elas e eles são cada vez mais numerosas/os. Quando outros carros de polícia chegam, os/as manifestantes barram a passagem cantando, dançando, gritando “Gay Power”, “Fag Power”, “Queremos liberdade”, numa série de enfrentamentos violentos e também alegres.
Durante cinco noites, interrompidas por rajadas de chuva, os tumultos prosseguiram ao redor do Stonewall Inn. Naquelas noites, o movimento LGBT moderno nasceu.
Texto de Didier Roth-Bettoni publicado na revista Hétéroclite, junho 2019, p. 17. Disponível em: http://www.heteroclite.org/wp-content/uploads/2019/06/H145web.pdf
Tradução: Luiz Morando.
