Daqui a pouco, em 2018, o filme Teorema, de Pier Paolo Pasolini, completará 50 anos. Há algum tempo trago isso na mente e fui rever o filme. Por coincidência, ao mesmo tempo se iniciaram as manifestações reacionárias contra determinados eventos artísticos no país.
E não é que Teorema ilumina muito tudo isso? O filme é uma pérola e muito já foi dito sobre ele. Mas sob certo ponto de vista, ele ainda é muito atual.
A narrativa é dividida em duas partes. Na primeira, um visitante se instala na casa de uma família da alta burguesia, em Milão. Ele se torna o ponto de convergência das atenções do pai (um industrial poderoso e opressor), da mãe (uma mulher fria, que não tem mais desejo pelo marido), do filho (jogador de basquete e estudante de artes plásticas), da filha (aficionada por álbuns de fotografia e obcecada pelo pai), da empregada (meio autômata, meio invisível para a família). O visitante convence a cada um da futilidade da existência. O visitante seduz cada, com seu desejo plenipotente. O visitante recebe um telegrama e parte, deixando a família.
Na segunda parte do filme, cada personagem precisará aprender a viver com a ausência do visitante. Inicia-se, então, uma diáspora que esvaziará aquela casa: a empregada volta para sua aldeia e se torna uma espécie de santa que levita; a filha se torna catatônica; o filho passa a habitar um ateliê e se entrega à produção de quadros que suja com fezes; a mãe se entrega ao primeiro que surge e passa a ter amantes; o pai abandona a atividade industrial, desnuda-se em uma estação ferroviária e desaparece no deserto.
Todo resumo (malfeito) de uma grande obra compromete sua qualidade pela incapacidade de quem a resume transmitir suas qualidades. Eu me redimo dessa falha passando a comentar porque o filme é visceral ainda hoje.
Já foi muito dito que Teorema é uma alegoria rica e ácida sobre a sociedade capitalista, burguesa, industrial, católica, consumista, liberal. Muito mais alegórico se torna no contexto em que foi produzido e exibido: no vendaval que correu a Europa ocidental a partir da movimentação estudantil de maio de 1968 e da repressão à Primavera de Praga.
O momento atual não nos permite perceber um vendaval naquela direção. Pelo contrário, o tufão atual tenta ser em direção ao enlace forçado com uma sociedade ainda mais capitalista, burguesa, tecnológica, carismática e neopentecostal, ultraliberal. Desse modo, ler em Teorema a pulsação do desejo como resistência nos ajuda a atualizar o filme, a retirar uma possível camada de pó que tenha ficado sobre ele.
A mãe é resistente quando toma as rédeas sobre seu corpo e o associa a uma noção subversiva de prazer. O pai é resistente quando se despoja daquela vida e busca um novo projeto a partir do zero. O filho é resistente ao buscar nova expressão artística que associa elementos opostos. A filha é resistente na construção de um mundo próprio, separado do pai castrador. A empregada é resistente ao abandonar o lugar de subserviência e tornar-se elemento especial, sagrado para seus conterrâneos.
Os personagens se tornam agentes do seu desejo, sublevando-se contra o lugar onde estavam, pacientes do desejo do outro, de uma estrutura socioeconômica que já tinha um lugar predeterminado para o desejo. Todos se tornam malditos ao se isolar do seu meio produtivo e de seus pares, sem ceder e sem fazer concessões ao mercado, à religião, à estética dominante, à moral.
O tufão atual nos exige a renovação dessas resistências e a criação de outras tantas. Nesse sentido, cada filme de Pasolini foi um ato de resistência, um ato de revisão, um ato de transformação de algum elemento reacionário na sociedade italiana do período em que viveu.
Precisamos recentralizar o desejo como ente de resistência e subverter os lugares fossilizados que insistem em nos alojar. Essa é uma possível saída para o enfrentamento do tufão reacionário que nos ameaça.